terça-feira, 27 de novembro de 2012

A CARROÇA - BELA CRÔNICA DE ASTOR WARTCHOW


A CARROÇA
 

(ein lustiger streich)

 

Astor Wartchow

Advogado

Porto Alegre-RS


Os jogos high-tech e as brincadeiras infanto-juvenis dos dias de hoje não guardam semelhança com as minhas reminiscências lúdicas, do mesmo modo que essas se dissociam das contadas por meu pai e seus amigos.

À véspera dos eventos sociais, eles sempre pensavam e articulavam uma arteirice. Ou, como diziam em alemão, “ein lustiger streich”! Uma dessas histórias me divertia especialmente: era uma molecagem que hoje seria considerada um caso de polícia!

Era mais um sábado com expectativa de diversão. Afinal, logo mais, à noite, haveria um grande baile. Bailes e quermesses eram as principais atividades sociais de então, sendo quase sempre realizados no salão da casa comercial, nos armazéns de fumo, e até mesmo na casa paroquial.

As famílias vinham das “picadas”, das “linhas”, das “entradas”, dos “travessões”, estas referências cartográficas que identificavam as pequenas localidades riscadas no mapa para receber os imigrantes europeus.

O local do presente relato é o Rio Pequeno, minha terra natal, distrito do hoje município de Sinimbu, outrora pertencente a Santa Cruz do Sul. O “Kleine Rio”, na expressão de seu povo, é uma localidade muito bonita, entrecortada pelas águas lentas do rio que batiza a vila. Com ares europeus, seus morros parecem colchas de retalhos, pedaços coloridos do plantio de frutas, milho, feijão, batata, fumo e pasto para o gado.

Tipicamente uma colônia alemã, seus integrantes cultuam os nobres sentimentos da família, da fé, do trabalho e dos valores sócio-comunitários.

Muitos dos que vinham ao baile em carroças desatrelavam seus animais, proporcionando-lhes descanso enquanto transcorria a festança. Alinhadas, as carroças dividiam o espaço com os ascendentes automóveis, que prenunciavam uma nova época.

O baile iniciara fazia mais de hora. Sob o ritmo animado da orquestra, entre polcas e valsas, o salão lotado explicava o vazio da rua. Salvo a presença de meu pai e seus amigos, quase anônimos, abrigados pela noite!

Entre quinze e dezoito anos de idade, corpos torneados e fortalecidos nas duras tarefas coloniais, tinham a força e a agilidade necessárias para a pensada empreitada.

Surpreendentemente, o alvo da planejada molecagem não era um automóvel, o fascínio de todas as idades; os olhos desses jovens estavam voltados para uma carroça, que estava estacionada ao lado de um grande armazém de fumo.

Certos da discrição de seus movimentos, cercaram a carroça e, em ritmo febril, se puseram a desmontá-la. Rodas, eixos, bretes, varais, uma a uma as peças essenciais da carroça eram desarticuladas.

Enquanto se dava o organizado desmonte, metade do grupo escalava o armazém, posicionando-se estrategicamente sobre o telhado.

Munidos de cordas, iniciaram a transferência das peças da carroça do chão para o telhado. Metódicos e rápidos, montaram a carroça sobre a cumeeira. Duas rodas de cada lado, eqüidistantes e em ponto de equilíbrio.

Imagem excêntrica e delirante, com seus varais erguidos para o céu como em oração a carroça sobre o telhado do armazém parecia uma torre de igreja. Um fruto da arteirice em homenagem à fé de um povo!

ein lustiger