terça-feira, 28 de julho de 2015

SEGUE O BELO DEBATE - O PASTOR LUTERANO SILVIO MENCKE RESPONDE AO DR. HERMES DUTRA


Prezado confrade Hermes Dutra.

Obrigado pelo retorno. Ele me motiva a reler o que escrevi e formular minhas palavras com cuidado ainda maior, para evitar mal entendidos.
Antes de mais nada, quero manifestar meu respeito pela tua biografia. Tiveste motivaçao, inteligência e energias para fazer a trilha, apesar dos obstáculos, quando outros, menos brindados, ficaram e ficam a meio caminho. Parabéns. Aliás, neste particular, nossas biografias tem muito em comum. Sou grato que foi-me dada força, que tenho inteligência normal, que vi perspectivas, que meu professor primário foi um bom professor, em escola particular, paga pelos pais, descendentes de imigrantes. Escola particular, com professor pago pelos pais, como nao acontecia na regiao das fazendas, onde somente o dono das terras decidia,  e onde o peao precisava apenas saber laçar rezes e falar "sim, senhor, patrao".
Quando escrevi que as pessoas que foram e sao marginalizadas precisam, para poderem viver,  transgredir as leis que fazemos para marginalizá-las, nao me referia a uma revoluçao organizada, que nao desejo e que nao teria chance de êxito, como mostra nossa história. Em todas as tentativas que fizeram no decorrer da histórtia, ainda que fosse somente se organizarem para sobreviver, os deserdados foram  impiedosamente massacrados. Se surgisse, hoje, um lider com o dom de organizá-los, sua imagem logo seria descontruída, por amplos setores da imprensa (quem sabe, também por parte de jornalistas da capital gaúcha); setores da imprensa que nunca souberam ou nao quiseram informar com isençao, informar sem tomar partido, muitas vezes descaradamente. Nao me referia a uma revoluçao organizada, mas à criminalidade, aos casos de violência que a nós todos assusta e que tanto gostaríamos de ver reduzida ao nivel das sociedades mais igualitárias, a exemplo dos países do Norte Europeu. Também nao fazia previsâo para o futuro, mas referia-me ao que acontece a cada momento, em nossos dias. Nao estou afirmando que os deserdados, os pobres sao mais criminosos que os bem sucedidos da sociedade brasileira gritantemente desigual. Mas sei que a marginalizaçao em favelas, com diária humilhaçao, com falta de perspectivas, de pessoas que vieram dos fundos dos campos, sem preparo, sem crédito, sem poupança, sem indenizaçao, sem estudo, sem formaçao profissional, desenraizados, representa uma realidade propícia para manifestaçôes de violência, ainda mais por parte de quem teve a violência como prática do seu dia a dia : Laçar, derrubar, marcar com ferro, castrar, sangrar e carnear. E entao, entre milhôes de jovens, de pais com essa biografia, haverá um ou dois que envedarao para a violência, dentro de um ambiente de acolhida hostil, humilhante e também violento, nas periferias  das cidades. A partir da década de 1960, mais ainda do que antes, milhôes de famílias experimentaram a violência do êxodo rural (o tsunami da violência), a marginalizaçao estrutural, sistemática, como demontram ainda hoje, as favelas e os ranchos à beira das estradas, em todos os lugares. Antes, quando alguém falava em favelas, referia-se ao Rio de Janeiro. Agora, até mesmo as pequenas cidades do interior passaram a tê-las. Perguntas qual a nossa culpa, que trabalhamos e pagamos impostos. A mim parece que nossa culpa é que permitimos que nossa sociedade fosse assim organizada, porque nao foram os pobres que a organizaram. Eles a sofreram e a sofrem. Quem a organizou foram as pessoas que tiveram o poder das decisôes e nós que nos omitimos, quando tomamos como foco (único?) fazer o nosso sucesso individual (no pior dos casos, quando usamos nosso poder e nossas relaçôes para organizar nossos privilégios, em uma sociedade de privilegiados e esquecidos, uma sociedade de centro e periferia, de luxo e lixo, de condominiados e favelados, de "famílias de bem e maus elementos", de herdeiros de sesmarias e herdeiros de escravos (a matriz de nossa história); uma sociedade que tem como característica  o enorme fosso social, que vejo como a matriz da maioria dos seus males: Por que iria uma político bem sucedido empenhar-se por bom sistema de educaçao coletivo se pode levar seus filhos a uma escola particular? Por que haveria de cuidar de bom transporte coletio se pode sentar no carrao e abrir alas com buzinaços? Por que cuidar de bom sistema de saúde coletivo se pode tratar-se no "estrangeiro"? Por que iria empenhar-se por um sistema de aposentadoria justo se suas relaçôes seu poder lhe permitem acumular aposentadorias ou usufruir de aposentadria privilegiada (penso que nao preciso mencionar exemplos). E quando os deserdados se organizam para exigir serviços melhores, ora, os bem sucedidos chamarâo seus câes de guarda que haverao de mostrar-lhes seu lugar e que os aconselharao a deixarem de ser preguiçosos.
Penso que seja louvável quando damos das nossas sobras aos que delas necessita, como tu fazes. E acho ainda mais louvável quando conseguimos posicionar-nos do lado do fosso onde estao os marginalizados, em nossas ideologias, em nossas convicçôes, em nossa leitura da história, em nossos conceitos sobre o ser humano, em nossa resposta de fé: De que lado do fosso me posiciono, para estreitá-lo? Essa é a pergunta que sempre me inquietou. Há quem dê com satisfaçao em doses de migalhas (e nao estou dizendo que esse seja o teu caso, mesmo porque nao te conheço pessoalmente), desde que a forma como a sociedade está organizada bombeie vantagens aos seus bolsos em doses maciças.
Li com atençao tuas consideraçôes e te agradeço. Elas motivaram-me a reler Tessalonicenses. Vi que o Apóstolo Paulo defende aí a legitimidade do seu apostolado, posto em dúvida por alguns, já que ele nao fez parte dos doze, desde o início. Para que ninguém o acusasse de exploraçao, ele afirma que tem uma profissao e que ele e seus companheiros nao se fazem depender, nao fazem a missao para ganhar benefícios. Portanto, o apóstolo nao fala aí dos "que nao querem trabalhar" por serem preguiçosos. Aproveitei e li também a Carta de Tiago, pouco citada por motivos óbvios, exatamente porque nao permite margem de má interpretaçao quando diz: "Para Deus, o Pai, a religiao pura e verdadeira é esta: Ajudar os órfaos e as viúvas (os deserdados de entao) nas suas afliçôes e nao se manchar com  as coisas más desse mundo (seria a coisa má a construçao secular do fosso? -Tg. 1. 27). Mas ele é mais claro ainda em 2.1-5, onde fala da discriminaçao que a comunidade cristâ deve eliminar. Nao vou citar essa passagem aqui, porque é um pouco extensa.
Para finalizar: Trabalhei toda minha vida com pessoas da classe média (classe média do lugar, geralmente conservadora, moralista e discrimiatória) e, na maioria dos casos, trabalhei com pessoas pobres, muito pobres, totalmente marginalizadas. Nunca encontrei uma única pessoa preguiçosa. No meu entender, nao existe a preguiça como fraqueza moral. Encontrei, isso sim, pessoas doentes, fragilizadas, desorientadas, despreparadas, derrotadas por obstáculos para elas intransponíveis, sem perspectivas; encontrei pessoas postas a trabalhar no lugar errado, em tarefas que as sobrecarregavam, para as quais nao tinham vocaçao, nem formaçao. Sinceramente, nao acredito em preguiça no sentido como o termo geralmente é usado, nao acredito em pessoas que nao querem trabalhar, em princípio. Nem mesmo nas finas damas que desfilam joias às custas da exploraçao que seus maridos praticam. (Profeta Amós). Também elas estao desorientadas. Com meu abraço. Silvio Meincke.