segunda-feira, 26 de maio de 2014

O TERROR NOS OLHOS DO FILHO - POR AFIF JORGE SIMÕES NETO - MAGISTRADO NO RGS


 

                               

 

 

 

O projeto de lei que proíbe o uso de castigos corporais em crianças e adolescentes, popularmente conhecido como Lei da Palmada, que tanta celeuma anda causando, tem tudo para ser sacramentado

 

De minha parte, apanhei do meu pai, não nego. Mas tudo muito breve – e praticamente indolor: uma ou duas chineladas e o educador dava por finalizada a reprimenda. Com a cinta, lembro uma única vez da tentativa. Sim, fui mais rápido e refugiei-me nas encostas do vestido materno. Porém, reconheço, fiz por merecer. Levei a óbito, pelo método da esganadura continuada, a caturrita tagarela da vizinha.

 

Conhecendo o meu pai, homem justo e sensível, sei que doeu muito mais nele o que aconteceu nas poucas vezes em que perdeu as estribeiras por minha causa. Passada a tormenta, tratava de me adular, com convites para dormir “grudados” e ajuda financeira a fundo perdido. Em seguida, aposentou o chinelo de couro rústico, até então utilizado como látego, substituindo-o pela conversa demorada em torno de sua visão intimista sobre o certo e o errado.

 

Conheci pirralhos, de puerícia idêntica à minha, simplesmente “desmontados” a pau por seus pais. Um deles, já moço formado, inclusive me confessou: se não apanhava todos os dias, parecia que lhe faltava alguma coisa no lombo. Acostumou-se ao flagelo, à semelhança do boi manso habituado à canga. A educação pelo sistema atávico era assim: se o grito não surtia o efeito desejado, despontava o castigo corporal logo de atrás, soltando fogo pelas ventas.

 

Hoje, não acalento a menor dúvida: bater em filho é coisa primitiva, de gente ignorante, sem a mais tênue noção de civilidade. Se laço resolvesse, haveria lugar de sobra nas cadeias, pois desconheço um só preso, que, antes de se sepultar vivo nas masmorras do Estado, não tenha sido espancado pelo pai ou pelo padrasto até sangrar.

 

Com meus filhos, aboli o açoite do rol das opções corretivas. Não que nunca tivesse vontade de dar umas palmadas no traseiro das pestinhas, principalmente no maior, meio arteiro pro meu gosto. É que, na única vez que saí do sério pra valer e parti para a ignorância, os olhos do miúdo me desarmaram. Sabe aquele olhar de pânico, semblante vitalício dos debilitados orgânicos? Não era nada, se comparado ao que o guri me fitou ante a iminência da agressão. Encolheu-se feito bicho do mato perto da porta do quarto, sem ninguém para acudi-lo, pois éramos apenas os dois em casa. O algoz covarde e enfurecido frente à pequena vítima encurralada, olhar algemado pelo medo. Recuei, açulado pela agudeza de uma lucidez efêmera. Recobrado os sentidos, voltei à carga com um abraço de corpo inteiro no moleque carinhoso, entranhas irrigadas pelo mesmo sangue - e ele me respondeu com o pranto copioso dos inocentes.

 

Imbricado nesse episódio, nem toda a oratória do mundo me convence mais do que aquele olhar, próprio dos desprovidos de maldade e que só os puros de sentimentos sabem ter. Agora entendo por que fotografia não precisa de legenda. Somente na meninice somos nós; depois, seremos os outros. Num dia qualquer, a vida - sempre ela – se encarregará de retirar o último fragmento de nossa infância: o brilho dos olhos, esse que nem o Dr. Hollywood nos devolverá. E quando se tratar de criança então, por pior que seja o deslize, nunca caberá tamanha pena.