ALFREDO, MEU PAI!
Para o meu Alfredo,
no dia em que lembramos os 39 anos de sua morte (24 de maio de 1892-22 de julho
de 1978)
EMANUEL MEDEIROS
VIEIRA
“Você é seu corpo/Sua voz seu osso/Você é seu cheiro/E o cheiro do
outro/O prazer do beijo/Você e o gozo/O que vai morrer/Quando o corpo morra/Mas
é também aquela/Alegria ‘verso , melodia’/Que intangível, adeja/Acima do que/a
morte beija.”
(Ferreira Gullar –
“Isto E Aquilo”)
Breve a vida. Quando morreste, eu tinha 33 anos e escrevi um
texto com o título acima.
Algum recorte está
nas minhas pastas “candangas”.
O senhor foi um homem nascido no final do século XIX (24 de
maio de 1892 – mesmo dia do seu neto Lucas, meu filho ( filho do amor) –24 de
maio de 2003).
“Encantou-se” em
22 de julho de 1978 – mesmo dia de aniversário do seu neto, o querido Luciano –
22 de julho de 1964.
Meu pai: o senhor foi
o melhor homem que eu conheci.
Católico fervoroso, de uma autenticidade raríssima: sempre generoso,sempre compassivo com os mais humildes,
Combatia os exploradores do Homem, brilhante e culto professor
e Inspetor Escolar.
Em toda a sua vida, a Fé e o Amor estavam acima de tudo!
Não deixou bens –
coisas fugazes, passageiras, “madeiras” da cobiça que o cupim rói e o tempo faz
desaparecer.
Mas deixou para todos os seus 17 filhos (sim, 17 – alguns já
lhe fazem companhia).
Legou esse bem maior
que carregamos em cada dia de nossas vidas: o sentimento de justiça, de
solidariedade, de respeito ao próximo, de honra (sem formalismo) – não a honra fácil dos protocolos –, tão
apreciada pelos medíocres e vaidosos –, mas de fundo e total respeito ao outro, de amor ao próximo– nada
retórico, absolutamente vivenciado.
Não adianta que
apenas nossas ideias sejam justas e boas.
É fundamental que
sejamos justos e bons.
Como o senhor sempre
foi.
Nunca vi um homem (papai) e uma mulher (mamãe) lutarem com tanta
dignidade, obstinação, pertinácia, estoicismo, mesmo nos momentos difíceis,
quando papai precisou vender a casa, a querida mamãe indo para outro lugar (com
outros familiares), deixando suas amigas, suas plantas tão amadas, e lembro-me
que ela carregava dois vasos de flores que estavam no varandão de nossa casa.
Antúrio? Samambaia?
Na casa chegavam quase todos os dias o “Curvina”, o cego
Antônio, com a sua bacia de moedinhas, seus andrajos, o Chico Barriga D’Água. E outros que meus
irmãos e irmãs poderão identificar.
Eu morria de medo da Barca-Quatro, furiosa, jogando pedras
em que a chamava pela alcunha, e contam que uma das pedras passou pela janela e
caiu no berço onde eu , bebê, estava deitado. .. Tinha uns três meses? Hoje: 72
anos.
Então: a “Indesejadas das Gentes”, andou me seguindo desde cedo, mas a vida foi sendo
maior.
Vai chegar a hora, meu pai. Não te preocupa, mas teu filho
andou pegando um câncer (que o poeta Jayme Ovalle chamou de a “tristeza das células”).
Alfredo e Nenen: intercedam
junto ao Pai, à Maria e a São Miguel Arcanjo– intercedam por todos nós,
habitantes de um país e um mundo complicados, difíceis, carentes de utopias.
Não era só um prato
de comida que papai e mamãe sempre ofereciam. Eram cobertores, roupas, camisas,
calças, vestidos, tudo, charque, leite ninho, café, feijão, arroz etc.
Era a palavra amiga, evangelizadora – e a ternura.
Ah, minha mãe, como lembro
dos seus “bolinhos de chuva”, de suas
tainhas, fritadas ou assadas no fogão de lenha, de suas balas enfeitadas, das
deliciosas cocadas que Nenen, a mãe, fazia.
(Outros preferem Nenê. Ela não gostava do seu nome
cartorário: Cidolina.)
Quanto tudo, pecuniariamente, ficou mais difícil (parecia
que tudo caía sobre as nossas cabeças, papai perseguido por seres perversos e
invejosos ( que devem ter morrido sem a solidariedade de si mesmos – usando a
expressão de Mário de Andrade) .
Ele foi, sem exagero,
um humanista em tempo integral.
Os cestos de balas e as cocadas, preparados – ficavam
belamente coloridos e ajudavam no modesto
orçamento doméstico.
Mas eu escrevi acima: não deixou bens materiais.
Deixou um legado incomparável com a matéria finita, algo que
não se mede em moedas – o senhor era do campo do SER, não do TER.
Sim: eu fiquei com um boné que era dele.
Mamãe era a mulher “prática” – um carvalho. E o senhor, como
os seus filhos, um intelectual.
Alguns queriam mudar o mundo.
Papai escrevia,
deixou livros evocativos e elos. Ele sempre lembrava – com orgulho – da conferência de Rui Barbosa , na qual esteve presente, em Petrópolis, RJ.
Havia um quadro do “liceu” (como se dizia na época), com o
retrato dos seus companheiros.
E toda vez que morria
um do grupo, o senhor colocava um X na testa do falecido.
E foram ficando poucos – muito poucos.
E, naquele sábado,
começo da tarde, pelas 13h30, de 22 de julho de 1978, alguém colocou o X no seu
retrato. Era a sua hora.
Não posso esquecer: o senhor era da Ordem Terceira de São
Francisco e ajudava a carregar o andor em muitas procissões,
Poderia ter escrito
algo com mais “encantamento”.
É verdade.
Sei como o senhor sentiu a morte da sua “patroa”.
Mas queria dar um exemplo para os filhos – não chorar na
presença deles.
Contemplou-a através
de um vidro (na época, falava-se em “sala de recuperação”, não de UTI).
Lembro-me de um lençol branco. De um balão de oxigênio. E de
um cheiro de menta, álcool, suor, morfina. Era 29 de março de 1968.
Mas depois, um irmão viu o “velho” Alfredo chorando em um banheiro do hospital de Porto Alegre.
Até, meu pai!
Vamos lutando – é da humana lida lutar –, fortalecidos pela tua incansável batalha prévia.
Sustos não faltaram.
”Ao longo do tempo/morri
muitas vezes: vida/mata mais que a morte”. (Olga Savary)
Alfredo: meu pai!
Alfredo: meu amigo – amigo dos seus filhos, dos seus netos,
dos seus amigos.
Esse homem que formou
gerações.
Seu nome era Alfredo
Xavier Vieira.
(Salvador, julho de
2017)