quarta-feira, 1 de novembro de 2017
PRONUNCIAMENTO INCISIVO DE NELSON WEDEKIN - RECOMENDO A LEITURA
A morte de Luiz Carlos Cancellier de Olivo foi um acontecimento trágico, infausto, mas não só.
Se houvesse uma só autoridade do Estado a refletir por breves momentos naquela situação, uma só autoridade com o olhar na lei, na proporção que precisa haver entre o seu ato e as suas consequências, Cancellier estaria entre nós, feliz e realizado como estava em vida, dedicando o melhor do seu talento e inteligência, de sua capacidade de trabalho, de sua vocação para o diálogo e o entendimento, prestando serviços em favor da Universidade e do País. A tragédia teria sido evitada.
Tudo está claro hoje. Os fatos que estavam sendo investigados não eram nenhum escândalo. Não havia flagrante. Não havia malas de dinheiro. Não havia licitações fraudadas nem obras superfaturadas. Não tinha nota fiscal fria nem dinheiro de caixa dois. Não estava em investigação financiamentos do BNDES a juros negativos, nem prejuízos biliardários de fundos de pensão.
Tudo parece bem mais próximo - e mesmo isso ainda está para ser demonstrado - de um conjunto de irregularidades, precariedade de controles, prejuízos possíveis que, calculados na ponta do lápis, talvez tenham alcançado a cifra de R$ 350 ou 450 mil reais. Isto em um programa que movimentou R$ 80 milhões de reais desde o seu início em 2006.
O detalhe de que os eventos investigados eram anteriores à posse de Cancellier não pareceu relevante às autoridades da operação "Ouvidos Moucos".
Também de nada valeu que Cancellier não tivesse antecedentes criminais. Era um homem de ficha limpa. Nos 59 anos que viveu ele foi preso uma única vez, no raiar daquele dia de setembro de 2017. Dormiu uma única noite na cadeia. E dali saiu para morrer 18 dias depois, consumido na voragem daquela terrível sucessão de acontecimentos.
Cancellier foi preso e os policiais que o acordaram de madrugada não souberam explicar as razões da prisão. Tentou rever na memória o que poderia ser, enquanto era conduzido de camburão ao prédio da PF, mas não passou nem perto.
Os policiais, o MPF, a juíza poderia ter tomado uma providência simples: mandar verificar onde morava o reitor. E veriam, então, que ele morava num apartamento modesto, de três quartos, num prédio modesto de quatro andares. Saberiam que ele não tem carro. E poderiam ter feito o raciocínio elementar: esse homem não tem o perfil de delinquente.
Também poderiam ter grampeado os seus telefones. Talvez o tenham feito. Como sabe esta casa, no Brasil de hoje é incalculável o número de telefones grampeados. Seriam 250 mil, 400 mil. Ninguém sabe. Mas se gravaram não tinha nada que comprometesse o reitor. Senão teriam divulgado, da mesma maneira que foi irresponsavelmente divulgada a cifra de R$ 80 milhões de reais como o valor de desvio, quando este é o valor total de todo o programa investigado desde 2006.
Aquelas autoridades, por dever de ofício, deveriam medir a extensão, a gravidade dos fatos investigados, face ao gigantismo da operação que montaram, a Ouvidos Moucos. Foram mobilizados, só da PF, 105 agentes policiais, muitos deles vindos de outros estados da Federação. Vieram agentes do longínquo estado do Maranhão, e sabe-se lá mais de onde. Não é demasiado afirmar que a operação custou mais aos combalidos cofres públicos brasileiros do que o prejuízo investigado.
Aquelas autoridades, imprudentes, desmesuradas, ao que parece não cogitaram de abrir uma investigação normal, regular, compatível com a dimensão do episódio. Isto é, abrir o procedimento, ouvir o reitor, os outros seis presos, os demais envolvidos. E no correr do processo verificar se havia dolo e culpa, e quem eram os responsáveis, se de forma total ou em parte, e quem possivelmente não tinha nenhuma culpa.
Se seguissem a alternativa comum, teriam obtido os mesmos (e até melhores) resultados com o uso comedido, discreto de 5 ou 6 agentes da PF. Não teriam gasto uma pequena fortuna em passagens, diárias, refeições, não teriam de importar reforços de outros estados. Ninguém parou para pensar. Seguiram apenas os próprios impulsos voluntariosos. Agiram sob a influência de um corregedor buliçoso, ansioso de protagonismo, tomado de excesso de zelo.
Não havia entre os investigados nenhum condenado, indiciado. Todos eram ficha limpa. Nenhum deles poderia ser chamado de "elemento", nenhum deles reagiu, nenhum deles era perigoso. Todos trabalhavam na Universidade. Todos tinham endereço certo e conhecido. Antes de levá-los às barras do tribunal, o que seria até razoável, levaram-nos às barras da penitenciária.
No Brasil são assassinados 60 mil concidadãos por ano. Em apenas 8% deles se conhece a autoria. Então, devem existir nas ruas das cidades brasileiras, e nos grotões do País, milhares de assassinos à solta. Nenhuma autoridade teve a ideia de fazer uma operação que reunisse, digamos, 100 policiais para encontrá-los, botar atrás das grades, quem sabe uma, duas centenas deles. E se não tanto, ao menos sete, para se equiparar à operação Ouvidos Moucos.
O programa de financiamento estudantil, o FIES, já acumula mais de 55% de inadimplência. Fraudes históricas no auxílio-doença, no seguro desemprego, no seguro-defeso vêm sendo praticadas há anos, como denunciam sistematicamente, os organismos de controle. São milhões, bilhões de prejuízos causados aos cofres públicos. Vez por outra, em longos intervalos, se monta uma operação especial para barrar a pilhagem, conter os abusos, punir os responsáveis. Nenhuma dessas mini-operações chegou perto do aparato da Ouvidos Moucos. Ao que saiba, ninguém foi preso, ou está preso.
Mas lá no meu estado de S. Catarina montaram uma operação estrepitosa para elucidar o possível desvio de alguns milhares de reais, cuja única consequência visível foi a de atirar na lama a reputação de um homem de bem, homem do diálogo e da conciliação, fazendo-o sucumbir na ignomínia.
Era um caso vulgar, ainda restrito ao âmbito administrativo. Um caso em que talvez, quem sabe, possivelmente, em hipótese, poderia ter causado algum prejuízo ao dinheiro público. Um caso de "obstrução à Justiça", embora a matéria ainda estivesse em instância administrativa.
Terá sido a primeira vez em que uma suposta interferência no âmbito administrativo, se transformou, do nada, em delito, em crime. E terá sido também a primeira vez que, por tão pouco, se põe na cadeia um homem comum, e mais ainda um professor, mestre, doutor e reitor de uma Universidade.
As autoridades responsáveis pela sequência trágica de erros ouviram, à rigor, duas pessoas para montar a expedição punitiva, o corregedor da Universidade e uma única professora. O reitor havia avocado para si o processo, ato corriqueiro, chancelado pela Procuradoria, que é da União, e não da Universidade. O ato legal, comum de avocação, e o depoimento de uma professora foram as sofríveis, duvidosas, discutíveis evidências de um crime menor, mas que desbordou para um decreto de prisão temporária.
Ao que se sabe, não cogitaram de um procedimento comum, da hipótese elementar de ouvir antes as explicações do reitor e dos demais. Fizeram uma ligação direta com a operação cinematográfica, com pompa e circunstância, atirando-os às feras da opinião pública, das milícias raivosas das redes sociais, dos justiceiros de plantão.
Expuseram-no à cobertura acrítica da imprensa, que deixou passar barato e acatou quase pressurosa, sem contestar, a versão pífia das autoridades. Os meios de comunicação, ou partes deles, que com justa razão se batem pelo princípio da liberdade de imprensa, neste caso como em tantos outros, acabaram por usá-la como porta-voz de autoridades do Estado.
Ao invés de produzir provas, produziram, uma operação de nome pomposo e manchetes sensacionalistas na mídia. Ao invés de fazer justiça, causaram dano irreparável a um homem, levando-o ao desespero, à pior das vergonhas, que é a vergonha pelo que não fez.
O combate à corrupção não é, decididamente, um projeto de salvação nacional. Que a corrupção é uma chaga moral que precisa ser combatida, reduzida e se possível banida, todos os cidadãos de bem devem estar de acordo. Mas ela não pode presidir as preocupações nacionais, como se fosse o único problema do país, acima de todos os demais.
Em tal contexto, tecnoburocratas endurecem as medidas de controle; ouvidores e corregedores e técnicos dos órgãos de controle vasculham repartições de Estado em busca de malfeitos, ameaçando com as normas e regulamentos que só eles conhecem e interpretam a seu gosto, causando pânico em chefes e subordinados.
Agentes policiais e procuradores do MPF, tomados de espírito messiânico, movidos pela ânsia protagonista, preferem operações midiáticas, ao invés da busca metódica e paciente de provas, ao invés dos procedimentos discretos de um processo normal. Processo normal é aquele que, se for o caso, não começa pela prisão dos supostos culpados mas termina com a prisão dos culpados verdadeiros e definitivos.
Magistrados, pressionados por policiais afoitos e procuradores apressados, ansiosos por mostrar serviço, e eles mesmos influenciados pelo clima punitivo geral, admitem de plano, sem maior exame, grampos telefônicos, quebra de sigilos bancário e fiscal, prisões temporárias e outras medidas extremas que devem ser tomadas só em caso justificável, com razão muito pertinente, em um Estado Democrático de Direito.
As manifestações públicas de entidades de delegados, procuradores do MP e juízes são altamente reveladoras e preocupantes: todas elas apoiaram a operação Ouvidos Moucos. Nenhuma delas viu erro, excesso ou abuso. Se perguntarem se já estamos em um estado policial, e se fosse para responder com a régua rigorosa dessas autoridades de linha dura, de sanha punitiva, e que em tudo enxergam um malfeito, um roubo, então deveria responder que sim: já estamos num estado policial. O que não permite tal resposta de pronto, é a esperança de que existam, em igual número e talvez até em maioria, delegados, procuradores do MP e juízes que trabalham com discrição e comedimento, fazem bom uso de suas prerrogativas e cumprem com exação e equilíbrio as suas funções. Eu mesmo, devo dizer, conheço vários deles.
O fato é que o clima, o estado de espírito que domina amplos setores dessas corporações predispõe ao abuso, ao exagero, à demasia, à exorbitância. E se estamos vivendo uma escalada é porque tais abusos, tais extrapolações, quando acontecem, fica tudo por isso mesmo. A impunidade, pelo erro, pelo abuso de autoridades, é a impunidade dos novos tempos. Pois no Brasil - e isso é bom e positivo, - não se pode mais falar de impunidade dos ricos e poderosos, tão numerosos são os que foram presos, os que estão presos e os que estão para ser.
A sanha punitiva de agentes do Estado, o atropelo de normas elementares da investigação, o conteúdo draconiano das regulações e das exigências de controle, para além de produzir eventos desastrosos como o de Florianópolis e da UFSC, de outro modo, consomem as melhores energias da atividade do Estado.
E tanto mais obsessivamente se criam normas labirínticas e complexas, maior é a necessidade de controles, novos e sofisticados controles. De tal sorte - e isso é antigo e é clássico, mas nunca chegou ao ponto em que está - as atividades-meio consomem cada vez mais recursos humanos e financeiros, distanciando o ente estatal da consecução dos seus fins e objetivos. Os meios vão se imiscuindo nos fins, se confundido com eles, paralisando tudo. Eis aí uma equação essencial da indesmentível ineficiência do estado brasileiro.
Os tentáculos do Estado, de muito tempo, alcançam a sociedade civil, as empresas privadas, compondo o opressivo custo Brasil, embaraçando e asfixiando a produção dos bens e da riqueza, desestimulando as atividades econômicas. Agora, autofágicos, implacáveis e irrefreáveis, se espalham perigosamente nos entes estatais.
Esse clima punitivo, opressor, repressor, policialesco é o germe do totalitarismo.
O professor Cancellier foi um exemplo de vida, dedicada ao bem, à justiça, à liberdade e à paz entre os homens. A morte autoinfligida foi um gesto desesperado de inocência, um ato político de coragem, um grito de alerta contra a força bruta e a injustiça.
O mínimo que podemos fazer é tirar, dos episódios trágicos de Florianópolis, os ensinamentos certos. O Senado, o Congresso Nacional é um lugar ideal para refletir sobre os fatos, alinhar iniciativas de reação e resistência, levantar a voz de defesa do Estado Democrático de Direito e das liberdades civis ameaçadas. Que o exemplo de vida de Cancellier, alma cidadã e sal da terra, nos dê força e coragem. Façamos agora enquanto é tempo.
Nelson Wedekin/BSB/31/10/2017