PERDEMOS UM GRANDE ESCRITOR: JOÃO GILBERTO NOLL
EMANUEL MEDEIROS VIEIRA
O título, eu sei, é um lugar-comum , e ririas com aquele teu jeito sóbrio, discreto e sofrido - daquele jeito tão teu.
Estivemos juntos na antologia "Roda de Fogo", publicada em 1970, ao lado de outros colegas já falecidos, como Caio Fernando Abreu, Moacyr Scliar, Josué Guimarães, Carlo Carvalho, Arnaldo Campos - e outros.
Ficamos muito próximos no final na década de 60 e e no início da de 70.
Fiz contigo uma "cadeira" (como se dizia na época) de Teoria Literária, na Faculdade de Letras da UFRGS.
Tu já fazias a Faculdade de Letras, eu na de Direito, junto com Caio Fernando Abreu e Elke, mais tarde conhecida como "Maravilha"
Passei um verão na casa de praia dos teus pais, no litoral gaúcho.
Te esperei na Rodoviária quando foste morar em São Paulo.
Foi um período de profunda efervescência -, tragos, lutas, esbórnias, sonhos. E veio o rabo-de-foguete da ditadura, que deu o mais duro "chega-pra-lá" na gente.
Tivemos de fugir e me pegaram. Mas essa é outra estória.
(Pelo caráter de urgência, escrevo um texto muito aquém do que merecias. Rápido, fragmentado - como era o teu. estilo.)
Cada um no seu canto. Antes nos correspondíamos muito. Devo ter cartas tuas nos armários e pastas já amareladas em Brasília.
Escreveste um texto para o meu livro "Cerrado Desterro", perdido, lamentavelmente, por uma revisora e, por azar, eu que tenho a mania de tirar xerox de tudo, desta vez, fiquei sem fotocópia.
Não pretendo fazer uma análise, mesmo que modesta, da tua obra.
Lembro de "Hotel Atlântico" - uma das tuas melhores obras.
O estilo seco, conciso, até rude, a busca de uma linguagem verdadeiramente penetrante, sem mentiras ou camuflagem, era uma ds tuas mais marcantes características.
Descarnado, tua poderosa linguagem buscava a palavra certa e exata, como fazia Flaubert.
O que dizer? o amigo, sem comfetes, deixou uma obra muito poderosa.
Teus personagens eram erráticos, perdidos num mundo desumano e absurdo, em busca de algo que não sabem bem o que é- lembrando também um autor que muito amamos: Albert Camus.
O QUE ESSA MORTE FARÁ COM TANTA VIDA?, pergunto.
E agora vais para outras esferas, e a morte - a "puta de olhos claros", como a chamou um poeta - era um tema recorrente (mesmo que às vezes escondido) na tua escrita.
Lógico: tua tão DENSA e poderosa obra ficará.
Falei contigo pela última vez numa Feira do Livro em Brasília, e lembramos de outros tempos.
Recordei-me que assisti "Hair" contigo.
Tantos filmes vistos juntos. E amigos comuns.
Um traço da tua obra, quem sabe, foi a solidão ontológica dos teus personagens.
E da tua vida?
Teus segredos estão agora debaixo dos sete palmos.
Alguns de teus personagens, errantes, erráticos, tinham esse traço que chamaria (sem querer se pedante) inadaptação, metafísica e radical - que não tem saída.
O que posso mais dizer? Vai em paz, meu amigo.
(Salvador, 30 de março de 2017)
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JOÃO GILBERTO NOLL,
O SILENCIOSO
WALTER GALVANI
Um grande ficcionista, um belo contista, um excelente professor. Diversos
prêmios conquistados (entre eles cinco “Jabutís”), 18 livros. Morreu sozinho no
centro de Porto Alegre. aos 70 anos. Lia, escrevia, dava cursos, ensinava e
sempre lutava contra uma incrível timidez. Esse era João Gilberto Noll.Só
deixou amigos e respeitosos admiradores, entre os quais se contavam o garçon
Ademir que o servia quase que diariamente no restaurante “Piato Mio”, na rua
Sete de Setembro, também no centro de Porto Alegre e os demais servidores
daquela casa que o admiravam pela tranquilidade e o silêncio com que sempre
agia. Muitos deles nem suspeitavam da dimensão do intelectual João Gilberto
Noll e sua importância nas letras rio-grandenses. Ele não era do tipo que vivia
propagando quem era e do que tinha sido capaz até agora.
Foi o criador de uma enorme galeria de personagens que nasciam na sua ficção,
seu forte, que sempre contrariou as correntes mais significativas e da
literatura aqui do nosso estado. Não era propriamente um romancista muito
popular, se é que algum escritor se situa nessa posição depois de Erico
Verissimo e Moacyr Scliar, por exemplo. Ele formava com maior naturalidade no
grupo dos contestadores das estruturas oficiais e ou consagradas.
Escreveu livros como “Hotel Atlântico” (de 1989) ou “Hamada” (1993), ou ainda
“Solidão Continental” (de 2012), ou o volume de contos, “O cego e a dançarina”,
que originou um filme de Murilo Sales, “Nunca fomos tão felizes” de 1984.
Alguns críticos e escritores o consideravam um dos nomes maiores da literatura
brasileira, como João Castelo, por exemplo, que o classificava como o “melhor
de todos”.
Nessa hora em que ele deixou de existir fisicamente, isso não interessa, porque
o importante é que agora inicia o vôo inigualável dos grandes intelectuais, sem
necessariamente ouvir contestações ou dúvidas. Jamais foi e nem seria e agora
não será, é óbvio, um ponto de referência comportamental porque já deixou seu
estado corporal físico. Poderá ser acessado em seus livros (dezoito) ou
nos textos esparsos que publicou e nos contos que deixou.
O livro “Lorde”, de 1984, é quase autobiográfico, mas sem dúvida o personagem
tinha muitos pontos de contato com o autor que nascera e vivera em Porto
Alegre, desde abril de 46. Só que o seu “Lorde” escolhera Londres, mas era
também o fascínio e o peso da grande cidade.
João Gilberto Noll se caracterizou pela doação pessoal, e como tal nunca deixou
de dar aulas, ministrar oficinas, como o fez até a semana passada, onde ele
ainda lecionou no “Aldeia”.
Mas fez tudo isso e toda a sua vida foi uma espécie de sinfonia só de
instrumentos de cordas, sem grandes ensembles de orquestras completas. Com
ninguém, nem ele próprio, “solando”, mas procurando sempre cumprir seu papel no
grupo, tocando sua parte e mostrando sua arte.
Michel Laub resumiu com perfeição que os seus personagens eram todos,
representantes da solidão e “transmitiam a sensação de insuficiência, social,
sexual e existencial”. E esse era ele mesmo.