terça-feira, 19 de julho de 2016

DISCURSO DE LISSI BENDER AO RECEBER MERECIDA COMENDA. BELO RESUMO DA AGONIA E DA AGORA PAULATINA RESSUREIÇÃO DA LINGUA ALEMÃ NO SUL DO BRASIL

Foto de Lissi Bender.
 
Liebe Freunde der deutschen Sprache und Kultur deutscher Herkunft! Estimados amigos da língua alemã e da cultura de origem germânica!

A língua alemã já me foi entregue no berço. Meus antepassados faleceram sem nunca ter falado outro idioma, e posso lhes assegurar, eram bons brasileiros. Em minha infância a língua alemã fazia parte de forma tão natural, como o ar que respirava. Somente adolescente, quando comecei a frequentar o colégio “lá fora”- na cidade - que me deparei com um fato novo: no espaço educacional eu era duplamente discriminada: eu era colona (vinha do interior) e era grossa (porque falava alemão e não dominava o português). Somente, mais tarde, já na Universidade Federal de Santa Maria, meus conhecimentos linguísticos foram valorizados. Enquanto monitora, comecei a dar aulas de alemão na universidade, em substituição à professora que fora estudar na Alemanha. Fiz curso de formação de professor no Goethe Institut de Belo Horizonte e fui também convidada a dar aula no Centro Cultural de Santa Maria. Mais tarde lecionei alemão na Pontifícia Universidade Católica de Pelotas. Minha graduação em língua alemã foi efetivada no IFPLA da UNISINOS, onde também participei da primeira turma do curso de Pós-Graduação em Língua Alemã.

Tanto em Santa Maria, quanto em Pelotas as salas sempre estiveram lotadas de pessoas interessadas em aprender alemão. No entanto, quando voltei a morar em Santa Cruz, meados anos 80, deparei-me com falta de interesse pelo idioma. Desde então não mais parei de investigar esta realidade. Para me aperfeiçoar, estudei literatura e cultura alemã na universidade Albert Ludwig de Freiburg. Para entender melhor minha região, sua história e dinâmica, fiz mestrado em Desenvolvimento Regional, na área Sociocultural. Em meu afã de querer conhecer mais, de entender melhor a realidade histórica, social, cultural de Santa Cruz fiz pesquisas. Em uma de minhas leituras me deparei com um texto do professor Theo Kleine em que promovia uma reflexão sobre significado da língua alemã presente em nosso Rio Grande. Theo Kleine foi o fundador da Casa da Juventude de Gramado e ativo participante  do Centro Cultural 25 de Julho que ora aqui nos abriga. Dizia ele „Die Sprache ist eben mehr als nur ein Verständigungsmittel unter den Menschen“. Isto é, que “a língua é muito mais do que um meio de comunicação entre pessoas”; e fundamentava que na língua se tecem e efetuam formas de vida forjadas durante séculos, e que a perda de uma língua significa perda de substância espiritual e intelectual; que quando uma perda acontece de uma geração para a outra, se instala no lugar do que foi perdido um empobrecimento espiritual e intelectual que, muitas vezes, nem é percebido pela pessoa atingida, mas que, com frequência, é motivo de desenvolvimentos desfavoráveis.

Estas palavras de Theo Kleine me levaram a querer entender mais e melhor o significado da língua alemã para Santa Cruz e para os seus falantes. Afinal, por que manter viva a língua alemã em Santa Cruz? Ela faz parte da identidade dos falantes? Ela faz parte da identidade de Santa Cruz? Estas questões eu persegui em meus estudos de doutorado na Universidade Eberhard-Karls de Tübingen, na Alemanha onde estudei e analisei a situação da língua alemã presente em Santa Cruz.

Para chamar atenção sobre a condição bilíngue de Santa Cruz, comecei a escrever crônicas, publiquei mais de cem, publiquei livros de receitas bilíngues, afinal  ... é pelo estômago que se conquista os comensais, pensei. Eu queria apresentar nesses livros algo especial que Santa Cruz tem para servir à mesa, a língua alemã.

Para que as pessoas percebessem o imenso valor imbricado no fato de serem bilíngues, iniciei na Universidade de Santa Cruz, encontros culturais em idioma alemão em 2009. Até final de 2010 havíamos promovido 32 encontros, ofertados gratuitamente à comunidade, que foram muito bem frequentados.

De 2011 a 2014 trabalhei no projeto de pesquisa, memória viva que resultou no livro Spurensuche – Rastros da presença da língua alemã em Santa Cruz, uma forma de fixar um pouquinho desse patrimônio imaterial de Santa Cruz em livro e, assim, chamar atenção para esta presença. Em 2014 foi iniciado o projeto de extensão Cultivar Idioma & Vivenciar Cultura com dois enfoques: o primeiro é o Stammtisch Deutsch, que são encontros temáticos culturais em língua alemã o segundo é o passado presente por meio de sabores, saberes e da memória. Este projeto conta com a monitoria da acadêmica Raphaela Hagemann, nossa Miss Santa Cruz aqui presente. Danke Raphaela. Já realizamos 24 encontros e estamos coletando receitas e histórias para o próximo livro. Cabe ainda colocar que há 14 anos sou comentarista cultural do programa A Hora Alemã Intercomunitária de do Programa Deutsche Musik da Radio Santa Cruz.

Senhoras e senhores, estamos aqui reunidos para celebrar a imigração alemã no Rio Grande do Sul, o legado da tradição do associativismo e  a herança linguística, ambos parte do patrimônio imaterial transmitido por nossos ancestrais.

Neste sentido gostaria de relembrar um pensamento do famoso psicanalísta Carl Gustav Jung psiquiatra e psicanalista suíço, um dos maiores estudiosos da vida interior do homem. 

“Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia. Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, só é completo, quando tem relação com essas coisas. Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber
o mundo exterior com exatidão. Isto é o mesmo que mutilá-lo.”, conclui Jung.

Fomentar a relação atenciosa com o passado é compromisso das famílias e das escolas. Também as diferentes línguas do Brasil devem ser fomentadas pelas escolas brasileiras. Cabe aqui lembrar que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo em diversidade linguística. Aqui são faladas em torno de 200 línguas que suportam uma imensa diversidade cultural. Em cada região em que existe uma língua regional, esta deveria receber o status de “língua regional” e fazer parte do currículo das escolas. Escola é o locus de aprendizado de valores. Lá a criança aprende a valorizar o patrimônio imaterial da comunidade em que sua escola está inserida. Se a escola falhar neste sentido, estará colaborando para que a cultura de sua comunidade seja depreciada. No caso da região de Santa Cruz, a língua alemã existente precisa receber maior apoio da comunidade representativa para o seu fomento e cultivo. Ela é um elemento que distingue a comunidade, ela faz parte da identidade regional e da identidade dos falantes. Além disso, por meio da preservação e do cultivo da língua, podemos alavancar desenvolvimento, cultural, social, econômico, intelectual e turístico para toda a coletividade.

Com relação ao plurilinguíssimo existente no Brasil e ao bilinguismo existente em diferentes regiões do Rio Grande e, para finalizar, quero ainda lhes apresentar uma fala do professor de filologia  românica da Universidade de Zurique na Suíça, Georg Bossong:

“Ideal wäre eine Welt der generalisierten Mehrsprachigkeit” – Diz ele: “talvez seja uma utopia, mas deve ser permitido, conceber uma utopia assim: ideal seria um mundo com plurilinguismo generalizado, em que tanto as necessidades da eficiência comunicativa fossem consideradas, quanto às necessidades da identidade dos falantes; ideal seria um mundo, em que cada indivíduo tivesse direito de escolha, de, sem repressão e sem obrigação poder falar livremente a língua que lhe parece adequada para  cada situação. Ideal seria um mundo de igualdade em liberdade.“

O prêmio que ora me é conferido não é somente para mim. Este prêmio eu dedico à minha universidade UNISC que apoia meu fazer pelo idioma e pela cultura de origem alemã. Esta premiação valoriza a presença da língua alemã na região de Santa Cruz e a dedico a todos que se empenham por ela, a todos que a falam e que aqui estão representados em cada um de vocês, que vieram e prestigiam este evento.

Herzlichen Dank für Ihre Aufmerksamkeit! Muito obrigada por sua atenção!