quinta-feira, 28 de março de 2019

SOBRE CÃES - Franklin Cunha


QUANDO OS CACHORROS FALAM.

Franklin Cunha
Médico
Membro da Academia Rio-Grandense de Letras

No “Colóquio de los Perros“ uma das Novela Exemplares de Cervantes, lê-se a autobiografia do cachorro Berganza, que deitado à porta de um hospital de loucos,  teve  a oportunidade de observar a desgraça do matemático incapaz de descobrir a quadratura do círculo, a tristeza do poeta cujos sonetos ninguém editava e  o desespero do político que não tinha conseguido explicar ao Rei o  engenhoso projeto financeiro para dominar a inflação e  evitar a bancarrota da Espanha.
Na porta do hospital logo se instalou outro cão, Cipion que entre eles  conversavam e contavam suas aventuras nas ruas. Um alferes, hóspede do mesmo hospital, passou a ouvir as conversas dos dois cães e se admirava que eles eram mais sábios do que ele. Ao contar para um enfermeiro o que ouvira, este se negava a acreditar que cães falassem e muito menos dizer verdades tão desagradáveis sobre o reino da Espanha.
A sabedoria de Cervantes e seu amor pelos cães é revelada nessa história, obra de elogios e afetos a uma criatura de honestidade inquebrantável, olhos melancólicos, companheiro desde tempos imemoriais, cujos ossos já eram encontrados ao lado de ossos humanos quando o homem caminhava à procura de alimentos e seus companheiros de quatro patas os seguiam para comer o que sobrava.
Outras histórias caninas já se contam desde antes de Homero, cujo cão Argos foi a única criatura que reconheceu Ulisses  ao voltar para casa depois de vinte anos de ausência.

Uma das mais recentes no gênero da literatura fantástica é As Cidades Mortas “( na versão, portuguesa, Colecção Argonauta, edição Livros do Brasil, Lisboa) e “ Cidade “ (na edição brasileira), cujo autor é Cliford Simak, escritor norte-americano,  um dos maiores clássicos da literatura de ficção científica de todos os tempos.
No livro, Simak conta a história humana a partir do ponto de vista dos representantes da família Webster e de um robô. Foi um antepassado remoto dos Webster, quem primeiro ensinou um cão a falar. A partir daí, milênios vão se passando e Simak demonstra toda sua habilidade ao criar uma obra fantástica. Com grandes doses de imaginação o autor mostra como aos poucos, os cães – muito mais ponderados e pacifistas que o homem – se tornam a espécie dominante na Terra. Nele, seres caninos questionam se a espécie humana teria realmente existido e dele se tira uma lição moral, ética e uma coerente visão do futuro. E fica-se com a pergunta final: Será que o destrutivo ser humano merece continuar no comando da Terra com todas as atrocidades que não se cansa de cometer? Ou será que nosso planeta estaria em melhores mãos, se guiado por criaturas que dão mais valor ao amor e à amizade, como os cães”? Há uma outra deliciosa história de cães de autoria do tão criativamente divertido  como socialmente “corrosivo “. É de  Pitigrilli ( Dino Segre, 1893-1975).
Um dia, um cão de fina estirpe foge de casa e se encontra , à noite, debaixo de uma ponte com um vira-lata magro e sarnento. Conversam e o cão de bela e perfumada pelugem conta sua vida na casa burguesa onde nasceu  e foi criado.

- Agora não estou mais naquela casa. Consegui fugir.
- Que queres? Aquela casa não me agradava mais. Os seus hóspedes eram demasiados ricos, demasiado bons, queriam-me demasiado bem. Até me enfastiavam  e me irritavam  com o seu afeto sem medidas. Enfim, davam-me tudo o que eu queria. E o que não queria.
- Não sabes quanto se está mal na abastança.
— Deixavam-te lamber os pratos? pergunta o vira-lata.
— Isso não, diziam eles, porque é anti-higiênico deixar que os cães comam nos pratos do dono. Até contavam uma história de um cão que por ter lambido o prato onde comera uma senhorita de dezoito anos  de família distinta, pegou a sífilis.
Assim se contam três amenas histórias de cães quase humanos, nossos fieis amigos desde imemoráveis épocas da história humana.



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