Funerais
linguísticos
Franklin
Cunha
Médico
Membro
da Academia Rio-Grandense de Letras
E
quando a Divindade quer abater a arrogância dos homens não necessita do
raio nem da violência; basta que confunda a sua linguagem, que a unidade da
língua seja abolida, e a torre cuja cúspide deveria tocar no céu torna-se uma
ruína, como estigma da impotência humana.
Walter
Porzig
em
“O Mundo Maravilhoso da Linguagem”.
René
Etiemble, professor de literatura da Sorbonne, está empenhado há anos numa
intensa luta contra o perigo de descaracterização da língua francesa pela
invasão incontrolável de palavras inglesas ou, pior, anglo- americanas. Em seu
livro Parlez-vous franglais? editado há três décadas, ele se propõe a
defender não apenas o idioma, mas a cultura e o modo de viver dos franceses.
Não são apenas palavras de empréstimo que se insinuam no francês - diz Etiemble
- mas trata-se de uma doença metastática que corrói a pronúncia, o léxico, a
morfologia, a sintaxe e o estilo. E, segundo recente pesquisa, dois terços dos
gauleses são favoráveis à instituição de uma terapêutica radical contra essa
grave doença.
Há
duzentos anos Rivarol afirmava: “O que não é claro não é francês”. Dessa boutade
Etiemble não participa, pois sabe que nenhum idioma é auto-suficiente e nem
pode dispensar verbetes alienígenas para permanecer fluidamente vivo e
atualizado. Porém a admissão indiscriminada de torrentes de palavras com
grafia, pronúncia, forma e flexão completamente diversas da língua original
pode prejudicá-la seriamente, embotando a criatividade linguística dos seus
usuários e obstruindo as fontes genuínas de enriquecimento e renovação.
A
linguagem é uma estrutura de grande complexidade, definidora da humanização do
homem. O linguista Noam Chomsky afirma, e tanto neuropsicólogos
como geneticistas confirmam, que a possibilidade da fala é uma condição
adquirida in útero (“As crianças não aprendem a falar: já o sabem “). Cavalli-Sforza,
outro linguista, diz que o ser humano nasce com a capacidade de apreender uma
língua, o que o distingue das outras espécies animais, mesmo as mais vizinhas,
possuidoras de meios de comunicação limitados. A linguagem é uma criação
cultural, tornada possível graças a um substrato anatômico e neurológico
complexo e único no reino animal. Afinal, ela foi o principal veículo
transmissor de toda a cultura e garantiu a sobrevivência e a supremacia desse
ramo de primatas ao qual pertencemos. E a maravilhosa diversidade de culturas
criadas pelo homem através dos tempos, é que fez surgirem milhares de idiomas.
Se
estes fossem apenas um meio técnico para o mero exercício do comércio
internacional, haveria vantagens e nenhum prejuízo em falarmos todos a mesma língua.
O problema é que signos linguísticos diversos implicam em modos de pensar, de
sentir e de interpretar o mundo, igualmente, diferenciados.
Esse
é o sentido mais profundo de uma comunidade idiomática específica; o de
ter uma imagem e uma visão peculiar do homem e do seu universo cósmico e
mental. Por isso, quando uma língua se extingue, perdem-se milhares de anos de
história do desenvolvimento cultural e da experiência psicobiossocial de todo
um povo.
Se
o desaparecimento das línguas prosseguir no ritmo atual, o futuro nos
reservará uma uniformização não só lingüística, mas cultural, ética,
estética e mesmo ideológica. E já se tornou um truísmo afirmar-se que na
diversidade está a liberdade.
Um
exemplo ilustrativo de diversas e ricas articulações em línguas culturalmente
muito próximas, oferecem as designações das várias espécies de relógios, nos
idiomas alemão e francês. Em alemão, Taschenuhr é o relógio de bolso; Wanduhr
o de parede; Turmuhr, o relógio da torre; Sonnenuhr, o de
sol; Wasseruhr, o de água; Sanduhr, o de areia. Quer dizer, todos
os instrumentos para medir o tempo estão, primeiro, designados sob o nome
principal Uhr, hora, depois se distinguem por sua forma e maneira de
funcionar. Essa distinção aumenta nossa compreensão sobre o objeto designado. O
francês, diversa e caracteristicamente, coloca nesses utensílios de uso diário,
mais interesse nas diferenças de forma do que nas de funcionamento. E, assim,
os nomeia: montre, o relógio de bolso; pendule, o de parede; horloge,
o da torre, cadran, o relógio de sol; clepsydre (lindíssima
palavra !), o de água e sablier, o de areia.
Então,
os diversos tipos de relógios desempenham entre os alemães exatamente o mesmo
papel que entre os franceses, porém a concepção linguística é diferente, não apenas
foneticamente como, também, pelo conteúdo, quer funcional, quer estético.
Se
tais diferenças já se manifestam em objetos concretos e singelos, o que
ocorrerá naqueles voláteis e complexos conceitos que expressam a mais alta
elaboração do pensamento humano tais como o bem, o mal, a liberdade, os
direitos individuais, a vida e todos os juízos de valor no seu mais amplo
sentido? Pois bem; a comunidade idiomática se funda sobre a posse comum e
consensual de um grande número de tais concepções e interpretações. E,
precisamente porque essa concordância é sentida como natural e não como algo
especial, os povos se unem mais fortemente pela comunidade
idiomática do que por um discurso ideológico de qualquer origem.
Muito
se tem realçado o desaparecimento de etnias, de espécies animais, vegetais e de
paisagens, mas pouca ou nenhuma atenção tem se dado às perdas linguísticas e ao
papel essencial desempenhado pelos idiomas nas suas respectivas culturas. Para
George Steiner, se os funerais linguísticos continuarem com a frequência atual,
os seis mil idiomas hoje existentes, dentro de um a dois séculos serão
reduzidos somente a uma centena ou menos. E, assim, perderemos um preciosíssimo
acervo de nossa milenar e diversificada herança cultural que, na verdade, deu
relevante contribuição para o atual estágio civilizatório.
A
luta pela manutenção de variados idiomas e culturas talvez seja decisiva para a
resistência à uniformização totalitária, não apenas linguística, mas de estilos
de vida, de condutas éticas, de sensos estéticos e, enfim, da liberdade
de expressão e de
pensamento.