quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

GAUDÊNCIO SETE LUAS


GAUDÊNCIO SETE LUAS ANDA TRISTE

Guilherme Socias Villela*

“Quem quer levar oferendas pra Gaudêncio em noite escura, leve bom trago de venda, mate-amargo e rapadura” - Luiz Coronel.

    Gaudêncio é um velho taura. Romântico. Criado pela imaginação de uma mente privilegiada. Um vivente de campanha que um dia “pulou a cerca da  vida”.  Onde Gaudêncio anda hoje ninguém sabe. Comenta-se que aquele xiru fantástico nasceu no pampa gaúcho. Aquerenciado naqueles tapetes verdes.
Pastos bíblicos. Arbustos. Umbus solitários. Casuarinas. Céus azuis emoldurando nuvens brancas - por vezes sombrias, chamando os temporais que afastam os pássaros. Rebanhos de gado. Ovelhas. Cavalos de variadas pelagens. Vez por outra, a lo lejos, se vê um ginete - um centauro rodeado de cuscos amigaços, fiéis, prontos a avançar sobre javalis invasores.
    Ah! O fascinante o pampa gaúcho.
Ocorre que, recentemente, o velho Gaudêncio assistiu na televisão (deve ter sido em algum canal celeste de assinaturas) o desfile temático da Semana Farroupilha deste ano. (Desta vez, nela incorporaram, como importantes na produção das riquezas do Rio Grande do Sul, descendentes de gaúchos imigrantes - dentre eles, alemães, italianos e poloneses). Mais recentemente, viu o Encontro de Artes e Tradição Gaúcha, em pleno parque da Octoberfest de Santa Cruz do Sul. Nos dois eventos o velho ficou entre surpreso e fascinado.
    Entretanto, meditando na sua sabedoria campeira, percebeu, desconfiado que nem cavalo torto, que muitas coisas vêm mudando no pampa. Atualmente, nas estâncias mais avançadas, se fala em genética de bovinos, pastagens artificiais, confinamento, certificação, rastreamento dos rebanhos de gado destinados aos mercados internacionais, além de chips nas orelhas dos novilhos e outras coisas inimagináveis para o seu tempo. (Mudaram as relações de produção e as mútuas lealdades das antigas relações trabalhistas entre patrões e peões.) Nessa ocasião, viu águas resplandecentes nas plantações de arroz; viu novos amplos matos de eucaliptos e, novidade, imensas extensões de terras pampianas preparadas para o plantio de soja - nunca tivera visto isso em seu tempo do lado de cá! Hum! Pensou, deve ser o progresso.
    Ademais, na querência das almas dos justos, onde deve estar o velho Gaudêncio, ele também notou que as melodias dos cantos do seu tempo vêm mudando. Pois o velho andou espiando, entre uma nuvem e outra, e percebeu que a música nativista vem sendo, aos poucos, contaminada por sons estranhos. Escutou, num dia desses, a música sertaneja se intrometendo!
Ouviu melodias do seu tempo emolduradas por uma bateria própria de animados rocks musics! Guitarras elétricas! Até um órgão apareceu - com suas pedaleiras e tubos vibrando em sons desajeitados! Só faltou o saxofone.
    Por fim, voltando para o seu canto das almas, mateando, o velho Gaudêncio aprontou-se para um jogo de osso e um truco gaudério. De longe, ainda olhou, com saudades, para uma sanga que conhecera em vida. Nela viu um peixe de prata - era sua adaga que, quando partiu, a havia atirado no fundo do rio.
    Como disse seu talentoso criador, hoje, se alguém ver  “um pássaro bater asas, é Gaudêncio envolto em plumas”.
    Depois, Gaudêncio Sete Luas partiu. De novo. Meio triste.

* Economista, ex-prefeito de Porto Alegre.