A romantização do calote
Fã de Belchior, fiquei incomodada com a glamourização de
seus deslizes, como se os ídolos tivessem direito a uma ética diferente da
exigida dos mortais
Perdi uma excelente oportunidade de ficar calada na segunda-feira
passada, quando disse, no ar, que a morte de Belchior não me comovia como a de outros
artistas, porque, de certa forma, era como se ele já estivesse morto há vários
anos. Com razão, ouvintes protestaram pela minha insensibilidade, mas passei a
semana inteira intrigada com algumas coisas que ouvi sobre o grande compositor
cearense e, por imprudência volto ao assunto. Mexer com mitos é pedir para
entrar numa briga sem ser convidada.
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Sou
fã de Belchior. É um dos grandes poetas da música popular brasileira. Digo é,
porque os poetas não morrem e podemos ouvir sempre os cantores de que gostamos.
Elis Regina cantando Como nossos Pais, um dos clássicos dele, me arrepia
sempre que ouço. O que me incomodou nos tributos ao ídolo foi a tolerância com
os deslizes, como se aos gênios tudo fosse permitido – do abandono dos filhos
ao não pagamento das contas.
Houve
uma certa glamourização do calote, como se o cantor tivesse simplesmente
abdicado dos bens materiais para viver numa aldeia remota, plantando para
comer. Mesmo tendo fãs dispostos a acolhê-lo, como fizeram nos últimos anos os
amigos de Santa Cruz, Belchior deixou dívidas em hotéis. Fugiu para não ser
preso por não pagar pensão alimentícia. Deixou na mão o empregado que cuidava
do seu escritório. Esses deslizes mundanos em nada diminuem a qualidade de sua
obra, mas não podem ser romantizados, sob pena de passarmos aos nossos filhos a
ideia equivocada de que os ídolos têm direito a uma ética diferente dos mortais.
O
grande Belchior não foi abandonado por seu público. Tampouco foi perseguido em pleno
século 21. Desistiu de fazer shows e de produzir por razões que só ele deveria
saber. Seus contemporâneos seguem trabalhando e encantando os fãs. Paulinho da
Viola, Chico Buarque e Caetano Veloso, por exemplo, já poderiam estar
aposentados, mas seguem na ativa. Eu não me incomodaria de pagar o vinho e o
jantar para qualquer um dos três, mas ficaria decepcionada se soubesse que
deixaram de pagar as contas ou que abandonaram os filhos como quem deixa pelo
caminho uma carga incômoda.