segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

TEXTO INSTIGANTE DO ACADÊMICO, MÉDICO E ESCRITOR DR. FRANKLIN CUNHA


NOSSAS NARAYAMAS 


 

Franklin Cunha

Médico

Membro da Academia Rio-Grandense de Letras

 

A Balada de Narayama filme vencedor do Festival de Cannes de 1983,  mostra o cotidiano de uma pequena vila no Japão  do século XIX. Isolados nas montanhas seus habitantes têm um cotidiano restrito basicamente à produção de alimentos, que mesmo com grandes esforços é muito limitada. Nossa sociedade baseada no consumo e acumulação de bens, cada trabalhador produz muito mais do que pode consumir e o excedente é comercializado. Na pequena vila japonesa cada um produzia o que consumia, não havia trabalho alienado ou exploração por terceiros gerando mais-valia, mas as técnicas de plantio e coleta eram rudimentares, o inverno rigoroso e quando a produção baixava não havia excedentes para a parcela improdutiva da população, ou seja, crianças e velhos incapazes para o trabalho e para a produção.

A população não podia aumentar, recém-nascidos só eram aceitos quando havia alguma morte, uma espécie de reposição, assim permanecendo estável a densidade populacional. Para resolver o problema de um nascimento quando não havia nenhum óbito as meninas eram vendidas, levadas para longe da vila e os meninos eram mortos, enterrados ou jogados no riacho
.

Não menos chocante era o destino dos idosos. Quando por volta dos 70 anos perdiam os dentes deviam deixar a vila, ainda que estivessem lúcidos. Os dentes perdidos eram um sinal de que já não podiam contribuir para o próprio sustento e que logo se tornariam um peso para seus descendentes. Então eram levados por um membro da família para morrer em Narayama, uma montanha que abrigava os restos mortais de diversas gerações de idosos e assim deixavam espaço familiar para um novo membro

Em 2003, uma onda de calor na França matou 14 802 pessoas, a maioria idosos e em toda a Europa morreram entre 35.000 a 50.0000 pessoas, entre idosos e crianças. Grande parte da população ativa estava de férias no Mediterrâneo ou nos Alpes enquanto os velhos morriam sozinhos em suas casas, nos asilos geriátricos ou nos hospitais rodeados de aparelhos, entubados ou sedados por drogas.

Na verdade, também nossa sociedade de abundância e de consumo seletivos, continua descartando seus velhos, mas de forma mais sofisticada do que faziam os pobres habitantes de Narayama. O que permanece igual, é a solidão afetiva que se observa tanto em Narayama como nas casas-depósitos geriátricas da chamada pós- modernidade.

 A Reforma da Previdência proposta pelos governos neoliberais de todo o mundo é uma forma de nos livramos dos velhos e de enviá-los para nossas Narayamas.

Sob a ótica da economia neoliberal, se os velhos não mais votam e nem produzem, seu destino é o isolamento, a solidão, a desafeição e a morte.

E como consolo, talvez alguns se lembrem e cantem velhas cançôes de sua juventude como aquela de  Charles Trenet:

Que reste-t-il de nos amours
Que reste-t-il de ces beaux jours
Une photo, vieille photo
De ma jeunesse
Que reste-t-il des billets doux
Des mois d' avril, des rendez-vous
Un souvenir qui me poursuit
Sans cesse