sábado, 12 de dezembro de 2020

MAIS UM BELO ARTIGO DE FRANKLIN CUNHA

A mão do executivo Nos meus tempos de piloto de linha aérea, vivi muitas situações que, "nos vagares de algum verão", passarei para o papel. Um episódio, no entanto, por ser tão verossímil quanto estranho, irei contar aqui e agora.. . Um dia, pilotando entre Rio e Belém um dos velhos Curtiss Comander C46 que eram como besouros - voavam contrariando as leis da aerodinâmica- ao passar pela cabine dos passageiros, fui chamado por um deles. Confundindo-me com um comissário de bordo, pediu para lhe cortar o bife do lanche. Quando descobriu que eu era o piloto, a carne já estava cortada e uma conversa inteligente e cordial tinha se estabelecido. Tratava-se de um geólogo, trabalhara no Oriente Médio numa companhia de petróleo inglesa e faltava-lhe a mão direita. Explicou-me que tinha dificuldades para executar algumas tarefas mas tantas amizades fizera ao contar a causa do defeito que, às vezes, até se divertia com ele. Revelou-me então que recém-formado, em parte por espírito de aventura e mesmo por não conseguir emprego, aceitou a oportunidade da empresa britânica que iniciava a prospecção de petróleo num país árabe. Solteiro, morava numa confortável e ampla casa e tinha a seu serviço um empregado tão eficiente quanto confiável. Eis que um dia a confiança transformou-se em sólida suspeita, quando do sumiço de seu Patek Phillip de ouro. Bela e preciosa jóia, fora comprada em Londres numa de suas viagens à sede da empresa. Com certa relutância, diante das negativas do até então honrado serviçal, mesmo assim resolveu demiti-lo e denunciá-lo à polícia. Dias depois, ao tentar se informar do destino do ex-empregado, ouviu estarrecido do comissário do dia, que o ladrão já tinha sido castigado de acordo com as leis islâmicas, isto é, sua mão fora decepada. É claro que um enorme sentimento de culpa invadiu a consciência de meu passageiro que, entre um e outro gole de café, contou-me o fim da história. Com a vaga deixada pelo infeliz ex-empregado, a desordem e a sujeira tomaram conta de sua casa e um novo caseiro foi contratado. Todos os móveis tiveram de ser deslocados para completar a limpeza e tão minuciosa ela foi feita que debaixo de um sofá foi encontrado o Patek Phillip de ouro. No mesmo dia o geólogo dirigiu-se à polícia para informar de seu terrível equívoco, pois já que não podia recuperar a mão, faria tudo para restituir a honra de quem tinha sido injustamente castigado. Revelado o fato do encontro do relógio, de imediato o acusador passou a acusado, preso, julgado e castigado como mandam as leis islâmicas: sumária e cruentamente, no mesmo dia foi-lhe decepada a mão direita. Após alcançar-lhe um Cointreau que o comissário de bordo ofereceu, despedi-me entre horrorizado e condoído com o infortunado geólogo pois meu colega de pilotagem chamava-me para iniciar o procedimento de pouso do velho Curtiss Comander C46 no aeroporto de VaI de Cães de Belém do Pará. Franklin Cunha Médico Membro da Academia Rio-Grandense de Letras