terça-feira, 2 de abril de 2019

CULTURA : MARAVILHOSA E ERUDITA CARTA DE UM FILÓSOFO, JOSÉ NEDEL

Caro ensaísta acadêmico Franklin Cunha,
  
    Seu belo e instrutivo ensaio “Funerais linguísticos” (agora no Correio do Povo, Caderno de Sábado, 30/3/19), me induz a propor algumas reflexões. A matéria ventilada é rica, exibe variados aspectos, todos interessantes.
Seleciono tão só alguns pontos.
    O perigo de descaracterização da língua francesa pela invasão incontrolável de palavras da língua inglesa, denunciado por René Etiemble, mutatis mutandis, ameaça também a nossa língua, que se vê ante um sem-número de termos desse gênero invadindo reportagens, artigos e colunas na imprensa cotidiana (v. g., compliance, 50% off, startups, spoiler, for sale, whatsapp, e-commerce, workshop, etc.). Mas não é essa questão que me interessa aqui e agora, senão outra, a da emergência da linguagem humana, “estrutura de grande complexidade, definidora da humanização do homem”, como escreve acertadamente o eminente ensaísta.
    É verdade, a possibilidade da fala é uma condição adquirida in utero; mas é duvidosa a afirmação de que as crianças “não aprendem a falar: [pois] já o sabem”, atribuída a linguistas como Noam Chomsky e outros. Essa tese é platônica: implica a existência de ideias inatas, que é contrariada pela majoritária tradição aristotélica. Segundo Aristóteles, na origem, a mente ou a alma (psyché) é uma tábula rasa em que nada está escrito. A partir da experiência sensível é que nela se lançam os conteúdos do saber. Assim se realiza verdadeira e progressiva aprendizagem. Sendo assim, o que é inerente à natureza é a capacidade de conhecer, não seu conteúdo. Este  é adquirido com a experiência.
   Outra questão relevante está implicada na afirmação bem lançada de que o “substrato anatômico e neurológico complexo e único no reino animal” torna possível a emergência da linguagem.  Esconde-se nisso uma sutileza que vale a pena desvendar: a distinção entre condição e causa. “Tornar possível”, permitir, é função da condição, não da causa. Condição não produz o efeito (no caso, pensar, falar), mas permite que a causa o produza.
    Segundo a antropologia filosófica, o substrato anatômico e neurológico é condição do pensamento, do conhecimento racional, da linguagem. Sua causa é a parte ultrabiológica do composto humano: a psyché, a alma racional, o noûs que, segundo Aristóteles, “vem de fora”; e, na concepção hebraico-cristã, é criação direta de Deus, não produto evolutivo a partir da matéria. Em virtude desse componente racional, o ser humano, verdadeiro “centauro ontológico” composto de uma parte imersa na circunstância e de outra dela emersa (José Ortega Y Gasset), tem uma plenitude interior que o impele à criação da linguagem, a fim de satisfazer a premente necessidade de se comunicar. Os animais não humanos, carentes de racionalidade, não tem semelhante plenitude interior que os incite à linguagem lógica. A propósito dessa matéria, o padre jesuíta Balduíno Rambo, cientista gaúcho de renome, deixou este registro curioso: O macaco tem aparelho fonador perfeito, condição que lhe daria plena possibilidade de falar. Porém não fala, porque, sem inteligência ou racionalidade e, pois, sem interioridade, “não tem nada a dizer”.
    Essa disquisição da antropologia filosófica escapa à linguística, à psicologia experimental, à ciência empírica in genere. A filosofia, por sua vez, sente-se à vontade em dar conta disso, e o faz com boas razões teóricas desafiadoras até da peremptoriedade das posições antagônicas, materialistas. Entre elas há quem (v. g., Karl Vogt) defina o pensamento como “secreção do cérebro” à semelhança da bílis, segregada pelo fígado; e da urina, pelos rins. Errado. A verdade é outra: o substrato anatômico e neurológico do composto humano é tão só condição do pensamento e de sua expressão pela linguagem, não sua causa, como foi evidenciado.
   Caro Acadêmico Franklin Cunha. Agradeço a oportunidade de ler seu belo ensaio, que me impeliu a propor esta singela reflexão.
    Um forte abraço.
    José Nedel