terça-feira, 8 de janeiro de 2019

JEJUM E RECEIO - BLAU SOUZA *



 

 

           Ainda na fase de valorizar Natal, parábolas e histórias edificantes ou divertidas, vou lembrar uma contada pelo Dô, meu cunhado, pai do Fernando Adauto, da Ana Maria, do alemão Gilberto e do Guilherme. O apelido, última sílaba acentuada do nome Fernando, fixara-se nos tempos em que atuava como jogador de futebol e nas rodas boêmias, nas serenatas, ao exercitar voz e violão. A verdade, é que suas visitas de noivo à Vera, na Estância do Sobrado, eram muito festejadas pela gurizada da casa. Pois ele sabia muito bem alternar música e histórias que se iam encaixando no imaginário de guris de campanha. Algumas ficaram bem gravadas em minha memória, de onde seleciono, hoje, uma delas, para compartilhar com os leitores. 

            Num tempo que já vai longe, quando não havia automóvel e as viagens eram feitas na base do cavalo, os gaúchos valorizavam a hospitalidade de uma forma comovente, até porque, em alguma ocasião, dela poderiam depender. Mandar desencilhar, servir mate e oferecer boia e pousada fazia parte do bem receber. É claro que isso não dispensava minuciosa observação do paisano recém-chegado, da sua montaria, das vestes e arreios, bem como do trato dispensado por ele à montaria e aos pertences. Em alguns lugares, o tratamento incluía lavar os pés de quem chegava, como ocorreu com o nosso viajante, que desde a madrugada cavalgava com poucos intervalos para descansar, arrumar os arreios e beber água de sanga. O fiambre, as galletas tinham sido devoradas havia algum tempo e a fome não era pouca. Olhando para o sol e os horizontes, calculava o meio dia, e ainda estava distante da estância que divisava ao longe. Não seria aconselhável apressar a marcha, pois o cavalo, suado e arfante, dava mostras de cansaço em dia quente de verão. Mas a sombra de arvoredo, casa, galpão e expectativa de presença humana, reavivavam cavaleiro e montaria. Finalmente, anunciados pelo latido dos cachorros, ouviu-se um Ô de casa do chegante, enquanto alguns peões saiam pela porta do galpão e o patrão se aproximava, respondendo à saudação de Laus Sus Cris (Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo) feita pelo viajor. A este, não passara despercebida a noção de ter chegado com atraso, na hora da sesta, que sucede ao almoço e recupera o pessoal para as lides da tarde.

           Claro que o Dô ia adaptando a história à capacidade de entendimento da gurizada, bem como dando espaços para perguntas e comentários, que por vezes alteravam enredo e fluxo do que pretendia dizer. Por sabedoria que a vida lhe ensinara, adequava as histórias ao público como fazem os editores de literatura infantil no aproveitamento de textos, por vezes trágicos, de autores consagrados como os irmãos Grimm, Hans Handersen e tantos outros. Certamente os autores citados não seriam tão conhecidos mundo afora, não fossem mascaramentos e traduções orientados através dos tempos e com valorização crescente de imagens e cores. Numa cadeira de balanço, cercado pelos guris, que disputavam seus joelhos, ele criava fatos e personagens que preenchiam o imaginário de ouvintes atentos e curiosos. Dô pontilhava linhas que iam sendo preenchidas pela imaginação e pela memória de cada um. As interrogações eram muitas e às vezes serviam como ponto final e instigante das histórias.

           Mas voltemos ao paisano e sua fome. Estava claro para ele, que chegara após a refeição, algo muito precioso em dia de estômago vazio. Desencilhou, foi bem recebido, mas ninguém mencionava alguma coisa que lembrasse almoço, comida, boia... Antes que o estancieiro voltasse para a sesta, ordenou que trouxessem banco, bacia, jarro com água e toalha para lavar os pés cansados do recém-chegado, que se ia apresentando ao responder perguntas enquanto mateava. O peão caseiro ia iniciando o preparo do ritual do lava-pés, quando o paisano, avaliada a situação e a fome, perguntou com voz entre firme e suplicante: Será que não faz mal, lavar os pés em jejum?

 

 

*Médico e escritor