quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

BRILHANTE CRÔNICA DE AFIF JORGE SIMÔES NETO - MAGISTRADO E ESCRITOR


SÓ TU E EU





Tenho contabilizado horas de voo a transportar esta minha fuselagem carnal pra lá e pra cá, desorientado, como quem carrega o filho padecido à procura de um posto de saúde sempre lotado. Com ela, períodos atrás, subia serras que pareciam tocar seus galhos na soleira do céu. Atravessava pequenos rios que ainda davam vau e descia bravas encostas, sem sequer perguntar o que estava achando da travessia.

O meu corpo, quando moço, era pleno de viço e vaidade. Tinha fôlego de maratonista. Braços em incansável préstimo aos outros da mesma espécie, e pernas resolutas a buscar amores desviados de sua rotina vulgar. Uma cabeça que eu não diria lúcida, mas complacente com a turbulência da viagem, e um tórax descarnado, muito próprio de quem viveu escondido na timidez.

O meu corpo, quando moço, tinha veias e artérias assemelhadas ao desenho de arroios interioranos, por onde o sangue novo desfilava todo o seu ímpeto de cavaleiro medieval.

Nos olhos vívidos, um cenário de primaveras enfloradas, quando a vida ainda era uma paisagem de aurora, musicada pelo riso sinfônico dos canarinhos da terra.

É claro que a gente não envelhece tão depressa assim, entre um jantar e o café da manhã do dia seguinte. Mas tenho notado que o meu corpo já não é mais o mesmo quando se acalma dentro de mim a cada sono que empeça. Os constantes deslocamentos deixaram-no afônico, em dispneia, embora resista em admitir a chegada da maresia que vai apodrecendo máquina e casco e convés.

A propósito, a linhagem racional a qual pertenço clama não é de hoje por uma CPI contra o Criador. O intento dos meus pares é investigar a fundo a ação omissiva d’Ele, que nada fez para impedir que os dias roubassem descaradamente o nosso tônus muscular, nosso colágeno, os cabelos e até um pouco da gana de viver, a cada despedida na gare da estação.

Sinto que se aproxima o momento de a carcaça me abandonar, exaurida e febril em razão do sofrimento tirano que lhe impus no verdor dos anos. E na minha opaca lembrança do que serei depois, restarão algumas imagens reveladas pela fotografia esmaecida de um tempo imemorial.

Na partilha dos haveres, não terei mais nada a oferecer-te, oh, Deus, afora estes pedaços meus sobrados do naufrágio.

Tu me fizeste assim, uma inquieta biruta a desviar-se das rotas da ventania, e eu sou, tão-somente, um rascunho em papel de pão do que fui quando me era inteiro.

Ah, corpo velho de ternas lembranças, agora sei por que andas arredio comigo, com cara de enfado e uma importuna vontade de quem pensa em se aprontar para o salto mortal. É chegada a hora do retorno ao colo úmido da terra, abrigo virginal e morno de todos os teus iguais de pele, ossos e fadigadas carnes

Varando estradas, em virações sentidas, vai o meu corpo, adulterado e melancólico. Do Corcovado ao Chiniquá, com cantos vagos, seguimos nós. Bem no final, por entre nuvens ou arrebóis, só tu e eu...