sábado, 7 de abril de 2018

PITACOS DO HABEAS - POR EDUARDO AYDOS


PITACOS DO HABEAS CORPUS
Crônica do Julgamento do Habeas Corpus Preventivo de Luís Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal da República Federativa do Brasil.

I: Se alguém no Brasil conseguiu acompanhar e entender, na íntegra, o voto da Rosa Weber, receba meus cumprimentos.

II: Assisti os dois votos da Rosa: na questão preliminar e no mérito do HC. Minha primeira impressão, é que ela esteve mais preocupada em se auto-justificar do que em explicitar os fundamentos da sua decisão.

III - Impressões, meras impressões... ainda sobre a Rosa de abril. Na primeira sessão do Julgamento, a impressão que me deixou, é que ela estaria preparando o terreno para, na discussão do plenário, romper sua postura de colegialidade exercitada nas decisões da sua turma e votar de acordo com sua reserva de consciência jurídica, vale dizer, contra a execução da pena no segundo grau de jurisdição. E, se essa impressão estava correta, já tinha seu voto escrito neste sentido. Mas, por manobra nitidamente protelatória da divergência, que, em sede do resultado do julgamento na questão preliminar, já dava o feito por favas contadas, veio o fatiamento da sessão. E com ela uma dilação de tempo em que muitas coisas aconteceram: a Nota Técnica dos Juízes e Promotores; as manifestações populares de porte significativo; a repercussão na pequena e na grande mídia, a declaração do Comandante do Exército. Acredito, sinceramente, e sem demérito à Ministra que, na sessão de abril, ela mudou seu voto - e o fez comodamente, como simples confirmação da sua postura pró-colegialidade. Mas uma coisa é mudar o voto, outra coisa é mudar o texto longo e juridicamente empolado da justificação do seu Voto. E, foi essa, exatamente a impressão que colhi da sua fala: uma colagem de argumentos, citações e autores que, além de destinados a causar impressão pela mera erudição, ora apontavam numa, ora noutra direção de raciocínio. Só consegui firmar convicção sobre o efetivo direcionamento do seu voto nos momentos que antecederam à sua final declaração.
Mas não se deduza dessas impressões, falta de apreço pela postura e o voto da Rosa Weber. Confesso que me surpreendeu a sensação de que, por detrás da couraça do seu juridiquês e da insistente, e quase impertinente, necessidade de afirmação da sua própria coerência, revelou-se influenciável no bom sentido deste termo, capaz de assimilar a mudança em torno e reagir tempestivamente às suas demandas. Virtude rara naquela Corte e absolutamente necessária para a condução a bom termo dos seus desafios na presente conjuntura. Virtude que espero seja confirmada nas ações de constitucionalidade vindouras.

IV: Gilmar Mendes, num dos seus atos falhos, revelou a verdadeira faceta da crise institucional protagonizada pelo STF: o 'empoderamento' dos escalões inferiores do sistema Judiciário. No outro (acompanhado depois pelo Dias Toffoli), relativizou a petensa cláusula pétrea da constituição que supostamente seria a justificativa fundamental da divergência; com efeito admitiu o cumprimento da pena antes do horizonte formal do trânsito em julgado...
Além da já famigerada e, muitas vezes, abusiva ou abusivamente praticada 'progressão da pena', teríamos agora, uma 'regressão do trânsito em julgado'... obviamente, para acomodar a clientela do momento (razão pela qual ela não poderia situar-se no marco lógico da jurisdição de segundo grau, mas estender-se por alguns meses incluindo alguns ao STJ), ou seja, para ultrapassar o marco temporal da próxima eleição!. E dê-lhe

jurisprudencialismo ad hoc nessa mixórdia!

V: E o Lênio duas vezes citado por Gilmar! A união perfeita dos contrários. Ora, pois... não podia dar outra.

VI: O Barroso roubou a cena do Gilmar. Enquanto este qualificou-se como artilheiro de metralhadora giratória - atirando para todos os lados, atrás, à frente, acima e abaixo, mas acertando apenas no próprio pé - o Barroso foi sóbrio, didático e sobretudo coerente. Mas, seu pragmatismo custou-lhe um momento de fraqueza, antecipando a possiilidade de conciliação com a divergência, numa solução do 'trânsito em julgado' a meio caminho, não tão perto que permitisse a prisão imediata do candidato, mas distante apenas o suficiente para viabilizar a sua candidatura.

VII: Metade do 'voto' decano foi resposta às declarações do Ministro da Guerra que, simples mas incisivamente e com alvo certeiro, dirigiu-se a quem interessar possa e o chapéu queira vestir, nos seguintes termos: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais." Entendendo que servia ao STF o capuz (entendimento que, aliás, parece constituir-se no maior consenso nacional dos tempos que passam), o ilustre decano destilou uma catilinária anti-castrense e pretoriana que, pelo contraste da notória e auto-reconhecida inépcia do sistema judiciário brasileiro, e do STF em especial, em oferecer respostas à cultura da impunidade e à escalada do crime organizado que grassa neste país, tangenciaram os limites de uma soberba inconsútil e de uma pueril provocação.

VIII: Para a crônica da segunda parte do discurso do Celso Mello, não vejo melhor observação que o comentário de um amigo no primeiro PITACO: “Parecia um disco arranhado.” Com efeito, repetitivo e estridente, a metáfora é perfeita. Especialmente pelos rrrs arrastados da sua retórica. Foi uma profissão de fé na imutabilidade da idéia-forma - uma espécie de platonismo vulgar - que os tempos não recepcionam e as letras pouco socorrem. E, não obstante, a sua ortodoxia quase desmoronou, sob o influxo da emoção que o levou, em determinado momento, a esquecer o texto e definir o conteúdo substancial do conceito do trânsito em julgado, em contradita flagrante de toda a sua argumentação. Pois reconheceu-o verbalmente como a condição processual em que se esgota o conhecimento da autoria, dos fatos e das intenções (exatamente o que autoriza a execução da pena após o esgotamento das instâncias ordinárias). O deslize involuntário deu-se quase ao final do discurso, mas talvez não passe na revisão do voto. Pode-se perceber que ele se deu conta do ato falho, meio que se engasgou na própria retórica, avermelhou o semblante mais do que o normal, tomou fôlego, interrompeu a linha do raciocínio e engrenou para os finalmente.

IX: Vejo na mídia as especulações sobre os 'Ministros nomeados por Lula' que votaram contra o HC; sobre os ministros de Collor e FHC que votaram a favor; sem esquecer o ministro indicado por Temer que votou contra. E o fato sugere um alento à desesperança deste cronista, eis que denota uma, ainda incipiente, mas nítida tendência à superação da clivagem político-partidária desta composição do STF que, a meu ver, predominou no manejo da crise institucional imediatamente anterior (impeachment de Dilma). Dois alinhamentos hipotéticos podem ter, isolada ou cumulativamente, determinado essa diferença.

Minha análise, já firmada em outros textos, aponta uma nova clivagem da sociedade brasileira, que já permeia as atuais e, em muitos casos, artificiais configurações e articulações partidárias. Trata-se da clivagem demarcada: de um lado, pela resiliência do ancién regime - na estranha aliança de oligarcas e totalitários entincheirados nos espaços público e privado da cultura da impunidade; de outro lado, pela aproximação difícil, mas possível, de interesses plurais, articulados pela necessidade estratégica da ruptura do círculo vicioso da corrupção e do crime organizado que se nutrem da impunidade, como condição para a retomada do desenvolvimento deste país.
Mas, a observação atenta dos processos em curso no nosso sistema político, também realça a emergência de um novo paradigma de comportamento político, marcado pela também efetiva e não meramente demagógica rejeição da subsunção, prevalecente no velho regime, dos valores mais adscritivos - do profissionalismo, do mérito acadêmico, dos interesses corporativos, das políticas globais (tipo one issue politics) - ao talante dos mecanismos tradicionais de representação e governo. Isso que implica na explicitação e consolidação de parâmetros éticos de comportamento político, capazes de resgatar espaços de diálogo possível na esfera pública... prospectivamente, círculos virtuosos de integração social que se sobreponham aos alinhamentos horizontais, estamentais ou hegemonistas que precisamos exorcizar.
Talvez seja, apenas, a expressão ingênua que emerge da nossa reação visceral à vergonha e ao desencanto do país que viemos a construir, mas vislumbro essa luz no fim do túnel. Não posso afirmar que a cisão, que determinou o resultado deste julgamento no STF reflita, isolada ou cumulativamente, essas clivagens. Mas a capacidade de percebe- las no perfil dos atores e na distribuição das suas forças naquele tabuleiro, me permite acreditar, ao menos, na sua possibilidade. E, na probabilidade, sim, de que o paradigma emergente agregue recursos de persuasão e potencial de sustentação muito superiores aos estertores do velho regime. Algo assim como o decolar de uma modernidade tardia, que já se submete aos testes cruciais da sua validação; que já passou no primeiro; e, que se apresta a enfrentar os próximos com maior força de impulsionamento.

X: Discutia-se o HC de Lula, discutia-se a possibilidade da prisão depois do julgamento de segundo grau, ou depois do trânsito em julgado, mas o Dias Toffoli teve o seu momento de glória disputando com o Barroso a maior preocupação pela situação dos presos sem julgamento no sistema prisional brasileiro e jogando confete no Lewandowski pelo seu desempenho à frente do CNJ. Nada contra, mas convenhamos... demagogia fora do foco não deveria transitar nos caminhos estreitos de uma Corte Suprema.

XI: Afazeres me impediram de assistir o Voto do Alexandre Morais. Lamento. O discurso do Luiz Fux, já me fustigando o cansaço, o tive por dentro dos conformes, na linha de argumentação do direito novo, que lançou âncora na composição da Corte. Depois, momentos incontidos de sono breve e reparador, me pouparam o desconforto de ouvir o Lewandowski e o Marco Aurélio, e me recompensaram pelo despertar no canto do cisne do ilustre decano, que me permitiu testemunhar, recomposto, o momento épico da Toreadora, na sua marcha que valeu a ópera de Bizet, e cujo texto, reprisando os arroubos do Battochio, me dou a licença de citar 'en français': "Votre toast, je peux vous le rendre / Senors, senors, car avec les soldats / Oui, les toreros peuvent s'entendre / Pour plaisirs, pour plaisirs ils ont les."

XII: Tiro o chapéu para a senhora Carmen Lúcia. Deu a volta por cima das suas próprias fragilidades e segurou, sem vacilar, no comando da Corte, o enfrentamento da divergência. Se o irredentismo da gaúcha Rosa não negar estribo à tropilha da mudança, o trem de Minas poderá mudar o curso da Santa Aliança no comando do STF. E, com Lula

na cadeia, a Velha República terá uma chance de, em definitivo, contar os seus dias ao sopro do Minuano.

(Texto elaborado em tópicos na minha página do facebook. Editei e alterei a ordem numérica de alguns pitacos para dar-lhes sequência temática nesta publicação.)