O galpão do velho
Saul
Meu pai, aquele homem
que teria completado seu centenário em junho passado, como o os pais do Ruy, do
Eliseu, do Eliceu e do Élvio repudiava o desperdício, sendo homem de poucas
palavras, tudo que se percebia era uma mudança na sua expressão, em geral, séria
que no tempo de um suspiro era tomada pela tristeza da desesperança.
Meu pai, como forma
de não desperdiçar tempo em diplomacia, caminhava pensativo, de cabeça baixa, a
passos largos, com os ombros um pouco encurvados para a frente, mão esquerda no
bolso e o indefectível cigarro na direita. Encontrando, diariamente, pelo
caminho os mesmos 2 ou 3 que vinham em sentido contrário, do outro lado da rua
– pois utilizavam-se as calçadas no sentido da mão – também se dirigindo ao
trabalho, os saudava com um toque na pala do boné: "Sim senhor. Bom
dia!" Andava seis quadras até o trabalho e esperava, conversando
banalidades meteorológicas com o porteiro, para apunhalar com o cartão o
desnecessário relógio ponto, transparecendo uma mistura de desdém e orgulho vitorioso
por mais uma vez estar lá quando o ponteiro grande indicava 3 minutos para o
início do expediente.
Nesse tempo, os
equipamentos da central telefônica de Pelotas vinham diretamente da Suécia em
grandes caixas de madeira. Caixas que abertas com cuidado, procedimento padrão
à época, forneciam tábuas de pinho de Riga de meia polegada, aplainadas em
uma das faces, que se prestavam muito à reutilização. Curtas na maioria das
vezes, num tempo em que compravam-se tábuas com 5,5m de comprimento, para quem
não conhece materiais de construção, atualmente é difícil encontrar madeira com
mais de 2,5m [o que cabe na largura da carroceria de um caminhão].
Com essa madeira
europeia, o velho que era obrigado a gozar férias em março, levou quatro anos
para construir um galpãozinho que media internamente exatos 2x3m.
Construtivamente relevante, a estrutura foi erigida com cruzetas de postes
telefônicos que eram substituídas regularmente. Não se compartilhava a
infraestrutura como hoje, quando penduram cabos de eletricidade, de telefonia e
de televisão, todos no mesmo poste, enfeiando as cidades. As cruzetas, hoje
feitas em concreto, também eram importadas e feitas de madeira europeia,
resistente aos humores do clima, infelizmente não consigo lembrar o nome e o
país de origem deste material.
A construção do tal
galpão, em prestações, sem ser sinônimo, gerou uma expressão familiar para
procrastinação, para tudo que nós adiávamos e prometíamos fazer depois,
dizíamos "agora nas férias...".
No primeiro ano,
dedicado ao revestimento externo das paredes e telhado, tive meu primeiro
contato com as habilidades necessárias ao trabalho de carpintaria, ganhei meu
primeiro martelo de verdade, com a recomendação de não chegar perto do
galpãozinho. Como somos uma longa linhagem de homens “sem-graça” um irmão do
velho que o visitava anualmente – em geral no carnaval que o paulista não era
bobo [carnaval em Pelotas durava uma semana, com folias momescas diárias] – com
vontade de trazer-lhe um presente, ou por ter recebido a amostra grátis,
carregou pela metade do país um martelo, a porcaria, que conservo até hoje, era
[e ainda é] muito leve e desajeitado tendo ficado guardado até que eu tivesse
idade para que o presente me fosse repassado, não fiz essa maldade com meu
filho que, todavia, haverá de herdá-lo.
O ano seguinte foi
dedicado às esquadrias, duas janelas e a porta, feitas de “próprio punho”, uma
grande estante para livros, e ao revestimento interno, forro e duplagem das
paredes, em compensado de embalagem de geladeiras. Nada dessa coisa moderna de
deixar rejuntes aparentes para disfarçar com massa plástica, sem utilizar
retalhos, as lâminas eram pregadas sobre a estrutura e recebiam um sarrafinho
desquinado em “D” nas frestas do teto; sobre os rejuntes verticais umas ripinhas
largas também desquinadas e tábuas caneladas sobre o rejunte à meia parede de
altura. Tais eram os detalhes de acabamento que acabaram consumindo as férias
do segundo e terceiro ano de construção.
Restando para o
quarto ano, primeiro, o acabamento da tal estante para os livros que se
empilhavam ainda no meu quarto, pois não seriam pranchas simplesmente, as
bordas e quinas mereceram atenção e revestimento e, depois, o equipamento com
uma mesa de estudos articulada sobre a parede em frente à estante e, no nicho
entre a estante e a parede do fundo, uma cama, também dobrável [lastro de arame
tramado e molas, herdada de alguma tia].
Enfim, se a narrativa
ficou aborrecida, imaginem como terá sido a construção propriamente dita. Faço
questão de torná-la pública desta forma por prestar-se à reflexão, homem de
muito poucas palavras e nenhum gesto de carinho, meu pai dedicou mais de quatro
anos me ensinando, da única forma que sabia, a importância da paciência e
persistência, do trabalho duro, feito com gosto e capricho, da parcimônia na
utilização de recursos, da ausência de limites para a criatividade. Ademais,
meu velho construiu um monumento ao saber, ao enriquecimento cultural,
simbolicamente me disse: “taí, agora se vire, estude, eu lhe dou todos os meios
ao meu alcance”.
Lastimo ter
comprometido 30 anos da minha vida para entender tais mensagens, provenientes
de um homem que nunca nos disse “não”, tanto por desnecessário, pois não lhe
solicitaríamos o impraticável, quanto por estímulo ao enfrentamento dos
desafios que nos impúnhamos com nossas escolhas.
Fraternal abraço e
Feliz Dia dos Pais!
Ivan