Se o nobre cavalheiro – ou a formosa dama, tanto faz – já
se levanta da cama “reinando”, de cara torta com quem circula ao derredor,
estressado ao último, alguma coisa não está bem regulada no interior da carcaça
mimosa. Caso blasfeme amiúde no trânsito, no trabalho, com o pedreiro ou passe
uma descompostura o único garçom do boteco, o diagnóstico aponta a necessidade
de ajuda psicológica pra ontem, e eu tenho uma sugestão que não costuma falhar:
vá a um enterro sempre que possível.
São vários os benefícios trazidos pela visita ao corpo
presente do semelhante que partiu. Cito apenas dois, para não me tornar
enfadonho. Primeiro, o velório não será o teu, o que se constitui numa enorme
vantagem em termos pessoais e financeiros. Em segundo lugar, o aspecto
esbranquiçado do de cujus, aquele imobilismo perene, sabe-se lá com que grau de
contrariedade, vai te conduzir à impiedosa realidade da finitude humana, do
quanto é breve a jornada terrena. E mostra que não passas de um morto em
potencial, um cadáver adiado, como dizia Fernando Pessoa, apenas no aguardo do
sinal da trombeta assoprada pela Magra.
Quem estiver sendo velado nem precisará ser das tuas
relações afetivas. Rico, remediado, pobretão, isso é o que menos interessa. O
fundamental diz respeito ao entorno, ao caráter pedagógico da situação
irreversível lançada à observância dos passantes.
Eis ali o retrato cáustico do tudo que se transforma em
nada, absolutamente nada, de uma hora pra outra. Se aquele despojo esmaecido
amou até a sofreguidão, se foi correspondido nas afeições mais intensas, se
realizou grandes negócios, se contribuiu com o dízimo para a igreja ou logrou
meia dúzia de incautos, nada disso terá importância doravante. Ao invés das
colunas sociais, agora o obituário. Acabou ali a trajetória enquanto ser
físico, e cumpriu-se o fadário ao qual não se pode fugir, bater em retirada.
A vida é mesmo muito frágil, uma bobagem, algo
irrelevante. Somos um bando de miseráveis errantes, um amontoado de ossos. Só
temos as digitais da pele como propriedade, pois até a alma tem dono. Nem os
filhos nos pertencem, pois são um empréstimo de Deus, que pode tirá-los quando
bem entender, sem qualquer aviso prévio.
Entre os dois episódios significativos da existência –
nascimento e morte –, haverá um lapso temporal com certa cronologia, quem sabe
aproveitado com atitudes de bondade, mas quiçá despendido com grotescos gestos
de desventura. Acontece que, mais dia, menos dia, estaremos nós entre quatro
velas de esparmacete, cravando um ponto final no que eventualmente existiu de
construtivo ou nefasto. Não custa rememorar a maior de todas as certezas: este
mundo não nos pertence. Estamos com o bilhete da passagem amarfanhado no bolso
do paletó, e a sentença irrecorrível determina a partida sem questionar o
conteúdo do nosso prontuário arquivado nas gavetas do Senhor.
É preciso dar lugar aos outros com urgência de chegar. E
depois, se maus ou benevolentes, o tempo se encarregará de destruir o que
fomos. Somente a terra, mãe dadivosa, nos dispensará a devida atenção, face às
exigências da cadeia alimentar.
É claro que alguém sentirá alguma saudade, talvez a família
num primeiro momento, mas te pergunto: se morremos um pouco a cada recordação,
para que serve o passado, senão para lembrar aos presentes, aos que choram e
sentem o olor das velas, que ainda estão vivos?