O homem na Lua
e muita gente nua
FLÁVIO
TAVARES*
O
cinquentenário da chegada do homem à
Lua, no próximo 20 de julho, não é apenas data de festa e júbilo pelo que a
ciência e a tecnologia alcançaram. O maior e mais admirável feito da História
humana nos obriga, também, a uma profunda reflexão crítica sobre o comportamento
e a atividade de cada um de nós, habitantes do planeta: o que aprendemos com
aquela façanha de amor e dedicação à ciência, ou de que nos serve no dia a dia?
A própria ciência tem centenas de respostas, desde a antevisão de
desastres naturais até as previsões da meteorologia, além do que descobre aos
poucos, ao entender o universo.
Nosso humanismo, porém, pouco – ou nada, até – aproveitou para valorizar
nossa vida na Terra a partir da comprovação da desolação da Lua, onde tudo é
inércia e morte. Aqui, onde a água dá cor à vida, tratamos o planeta com
desprezo, como se a natureza não nos protegesse e nossos semelhantes fossem
indesejáveis intrusos.
Fui um dos bilhões de habitantes da Terra que, naquela madrugada do
domingo 20 de julho de 1969, assistiram ao vivo, pela televisão, aquilo que
mais parecia o deslumbramento de um sonho fantástico. Até então, a inatingível
Lua só era perscrutada pelos telescópios. Ou era, apenas, um relato poético, um
Sol noturno dos namoros apaixonados. “Levar-te-ei
à Lua!”, exclamavam os namorados (assim, em mesóclise), no êxtase da
paixão.
Naquele momento, a façanha da astronáutica mudava a correlação de forças
na “guerra fria” e os Estados Unidos passavam à frente da União Soviética. Doze
anos antes os russos haviam lançado o Sputnik e em 1961 Iuri Gagarin fizera o
primeiro voo espacial. Naqueles tempos de 1950-1970, tudo se circunscrevia à
disputa entre as duas superpotências e isso fez a repercussão política do feito
superar a visão humana e da ciência.
Hoje, a cada dia mais sabemos da desolação lunar. As fases da Lua
ganharam suportes científicos que explicam sua influência na Terra. Assim, a
todo instante o universo e o Sistema Solar passam, também, a fazer parte da
nossa vida. A astronomia tem nova e mais ampla dimensão. Se ainda indagamos os
astrólogos para saber do amanhã, é apenas por nosso apego ao lúdico, esse
atávico amor ao inesperado, originado na tradição e em nosso apego à fantasia.
Não aprendemos, porém, a grande lição de o ser humano ter pisado na Lua.
Em vez de tentar entender o universo, ou em vez de nos sentirmos pequenos ante
ele, a cada dia destruímos nosso planeta, obra suprema do processo da Criação.
Nos últimos cem anos, em nome do “progresso”,
devastamos a Terra muito mais do que a destruição acumulada ao longo dos
bilhões de anos do planeta. Sabemos que o aquecimento global é catastrófico e
que as mudanças climáticas nos levarão a uma desolação comparável à da Lua, mas
permanecemos praticamente inertes. Seduzidos pela cobiça e por suas prazerosas
pequenezes, continuamos a desmatar imensas áreas verdes, como a Amazônia. Ou a
poluir e degradar terras, águas e ar, como em Brumadinho ou em Mariana.
A extração e o uso dos combustíveis fósseis – em especial, o carvão –
são apontados pela ciência como os principais responsáveis pela hecatombe do
aquecimento global. Com base nessa constatação, as reuniões intergovernamentais
promovidas pela ONU vêm advertindo para o horror à vista e fixando datas e
metas para evitá-lo, ou acertando acordos sobre o clima. O de Paris, mais
recente, ampliou o que fora acertado já em 1992 na cúpula de chefes de Estado
no Rio de Janeiro. O papa Francisco aprofundou o debate na encíclica Laudato
Si’, fez a teologia tocar no tema fundamental – a vida – num alerta que ele
próprio renova a cada momento.
A série de intermináveis pequenezes do dia a dia, porém, desvia nosso
olhar do essencial e vemos tudo sem enxergar nada. É como anoitecer ao meio dia,
à luz do Sol, e usar lanterna ou lampião para vislumbrar o próprio rosto.
Imprensa, rádio e televisão mostram, todo dia, nosso desdém pela natureza,
que é vida em si. As geleiras derretem-se na Groenlândia e no Himalaia. Na
Antártida, no inverno do Hemisfério Sul, a terra preta mostra que o gelo sumiu.
O desdém irresponsável torna-se criminoso também aqui, ao nosso redor. A
poucos quilômetros da nascente, as águas do rio Tietê estão infestadas de
espuma branca industrial, num horror antes visível apenas na cidade de São
Paulo. A Petrobrás e as demais petroleiras que exploram o nosso litoral jogam
no oceano (sem nenhum tratamento) o equivalente a mais de 2 mil caminhões de
cascalho e areia encharcados de óleo, por ano. E o fundo marítimo se infesta de
HPA, um hidrocarboneto de alto poder cancerígeno.
Como serão os segredos devastadores da exploração do nosso pré-sal?
Ao norte do País, a cobiça continua a desmatar a Amazônia. Agora o atual
governo nos expõe ao ridículo espetáculo circense de que a Alemanha e a Noruega
tenham de “convencer” nosso ministro do Meio Ambiente a proteger nossa
floresta. Ao sul, o projeto de uma mina de carvão a céu aberto degradará, em
poucos anos, o rio Guaíba, que abastece a capital gaúcha.
Somos o país que mais consome agrotóxicos, permitindo aqui até
pesticidas proibidos na Europa e nos Estados Unidos. A lista de nosso
irresponsabilidade é longa, sempre incompleta por ser interminável...
Faz 50 anos, ciência e tecnologia levaram o homem à Lua. Não aprendemos,
porém, a viver em paz e em solidariedade. Somos difusos e complicados, ternos e
brutais. As religiões e filosofias surgiram para nos emendar ou regenerar, mas
o delírio da condição humana não se dissipou.
Hoje conhecemos a Lua, mas cada vez há mais gente vivendo na rua,
ignorando o mundo, às vezes quase nua.
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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000
E 2005, PRÊMIO APCA EM 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE
BRASÍLIA
(Por especial e honroso pedido do dr. Franklin Cunha)