Quando a alma se reencanta – Lissi Bender lissi@unisc.br
Construir túneis por entre
o cômoro de Sägemehl, serragem resultante da serraria de meu Papa;
deitar sobre a relva e ficar por longo tempo espreitando sons da natureza,
observando nuvens no firmamento a formarem mágicas figuras que lentamente se
desfazem e se reconfiguram em novas parecenças; contemplar rolinhas prazerosas
ciscando lasquinhas de arroz sobre o outeiro de cascas, sobras do moinho, onde
minha Mama passa o dia carregando pesados fardos de arroz e de milho,
transforma-os em alvos grãos e farinha amarelinha, e os devolve aos
agricultores; brincar de casinha no prédio adjacente em ruínas. Móveis
construídos com pedras e pedaços de tábuas da serraria. Os gatos, sempre muitos
para manter longe do moinho os ratos, são filhos em nossos simulacros infantis,
todos eles batizados em cerimônia religiosa, em ambiente festivamente
ornamentado com ramos de Fenchel e flores. Paramentada de pastora
luterana, celebro os batismos. Animais que falecem recebem enterro digno com
oração, flores plantadas sobre o túmulo identificado com uma cruz.
Reviver o
passado, reencantar a alma.
Nem só de folguedos era
feita a infância. Todos tínhamos responsabilidades a cumprir. Compromisso
diário de alimentar os animais, saciar-lhes a sede. Acompanhávamos
a Wowa e o Papa à roça onde vicejavam, sob nossos cuidados, alimentos para
as muitas vidas a compartilhar conosco vida. Também na horta e na lida de
casa auxiliávamos nossa Wowa que, em meio aos afazeres, contava histórias
e cantava
conosco Kommt ein Vogel geflogen ... Às refeições rezávamos Komm Herr
Jesus, sei unser Gast und segne was du
uns bescheret hast. De noite a Mama passava pelo quarto para rezar
conosco – ich bin klein, mein Herz ist
rein, soll niemand drein wohnen als Jesus allein
- e nos dar um gute Nacht .
A Alte Pikade de
minha infância ria, chorava e sonhava em alemão. Somente na escola o
alemão continuava proibido por determinação de nosso professor. A proibição
havia sido revogada fazia tempo, mas o mestre continuava a nos vigiar até mesmo
durante o recreio. Para substituir o idioma da família, colaboravam recreações
ensinadas em português, como cantigas de roda - O cravo brigou com a rosa -
e algumas brincadeiras -“Quem vem lá? O diabo! O que ele quer? Nome de
passarinho”. Mas, mal o professor dava as costas para se dirigir a sua casa ao
lado, voltávamos a falar em alemão, mas ai se nos surpreendesse falando a
língua proscrita, fazia-nos ajoelhar diante da classe, de frente para a parede.
Falar em alemão era passível de castigo e humilhação. Professor Rabuske
também não cantava em alemão conosco. Quando algum canto entoava em outro
idioma, era em italiano - Sul mare luccica l'astro d'argento,...
-.
Por incrível que pareça, a
Campanha de Nacionalização, apesar de encerrada, continuou a
engendrar consequências funestas para a língua regional santa-cruzense durante
muito tempo. Até mesmo a escola criada pelos imigrantes alemães serviu de
instrumento para manter interditada a língua daqueles que a criaram.
Lissi Bender
Professora de Leitura e Produção de Textos,
Língua, Literatura e Cultura Alemã
Subchefe do Dep. de Letras