terça-feira, 10 de setembro de 2013

LIVROS - BELA CRÔNICA DE LISSI BENDER


Livros, fonte de ventura  – Lissi Bender – lissi@unisc.br

Eu iria completar quinze anos. Na Kolonie as possibilidades de estudo haviam se esgotado. Estudar lá fora, na cidade, tornara-se sonho teimoso. Como realizá-lo se meu português era rudimentar, se dinheiro era um nobre ausente, se nem conhecia bem a Großstadt? Vezes e vezes levei minha Mama à beira de ataque de nervos com minha insistência. Primeira vitória foi a aprovação no Admissão ao Ginásio. Munida de entusiasmo, minha Mama foi ter com o saudoso deputado Silvérius Kist. Mediante sua intervenção encontrou-se a solução: uma bolsa ‘carente’ para estudar no Mauá. O busão do Bauermann era pago com o dinheirinho que recebia da Frau Mandler por lhe alcançar leite de sua chácara, perto de casa. Por estes meandros pude entrar em contato com um mundo novo.

Minha ventura foi encontrar no Mauá espaço apropriado para ampliar meus conhecimentos de mundo e de meus conhecimentos linguísticos, tanto do idioma alemão quanto do português. Lá também tive acesso a uma excelente biblioteca da qual passei a ser frequentadora assídua. Nela os livros eram separados por nível de escolaridade. Vez por outra eu tentava retirar algum do segundo grau, mas aos olhos de lince da bibliotecária não escapava nada. Isso fazia crescer dentro de mim o desejo de ler aquilo que me era vedado. Numa ocasião eu pegara um livro da lista negra. Nossa!  Die hat mir mal die Leviten geles‘! A reprimenda ficou indelevelmente registrada em minha memória.

Não é que  pouco depois eu descobri a biblioteca pública? Lá eu encontrei o livro proibido. Fiz minha carteirinha e resolvido  estava o impasse. A partir de então eu costumava vagar por entre estantes recheadas de livros interditos para mim, selecionava um, decorava o título e o tirava na biblioteca municipal.

O entardecer, ao pé de uma frondosa árvore, costumava ser o  momento mágico em que meu pequeno mundo se encontrava com o universo novo que eu descortinava nos livros. Por meio da leitura instruía-me nos idiomas e, à medida que deles me apropriava mais, meu horizonte ganhava em amplitude, minha alma alçava voos, desvendava mistérios para além dos confins de meu roseiral.

Nem tudo era ventura. No que tange os livros, alcançou-me um evento em particular. Naquele tempo corriam histórias de um e outro seminarista que abandonara os estudos porque teria enlouquecido no seminário. As beatas propagavam, à boca pequena: ‘dea hat zuviel geles!’, que era por excesso de leitura. Como eu vivia com o nariz enfiado em livros, minha Mama começou a cismar, ‘mein Kind wird verrückt’, tratou de tomar medidas preventivas. A leitura deveria ficar restrita ao essencial.

Como eu não observava as restrições, instaurou-se campanha implacável de proibição de leitura. Passei a ler de noite na cama. Quando minha Mama entrava no quarto, o livro sumia embaixo da coberta de pena de ganso. Não é que um dia ela me flagra? Fechou o tempo, tirou-me o livro e lhe deu sumiço para que entendesse a seriedade de sua ordem. Minhas leituras ficaram limitadas ao horário entre os dois turnos de aula lá fora, na cidade. Schade! Pena!