sábado, janeiro 12, 2013
por Janer Cristaldo
http://cristaldo.blogspot.com. br/
Em uma discussão no Facebook, ouvi de uma conterrânea uma frase curiosa: viajar é perigoso. Dado o contexto – discutíamos questões de Dom Pedrito -, a moça não falava dos riscos usuais de uma viagem, tipo queda de avião, doença no estrangeiro, roubo, perda de bagagens. Nada disso. A moça se referia ao risco de o viajante adquirir senso crítico. Ora, esta é a mais nobre motivação de uma viagem.
A frase que vou citar é de Chesterton e nada tem de novo para quem me acompanha: não se conhece uma catedral permanecendo dentro dela. Você não conhece seu país se dele não sair. Muito menos sua cidade. Para mim, sair do Brasil foi fundamental para conhecer o Brasil. O homem não conhece exatamente valorando. O homem só conhece comparando.
Viajar ilustra, costuma dizer-se. É verdade, embora haja pessoas que podem dar voltas ao mundo e não vão aprender nada. Mas o mais inculto dos viajantes – mesmo aquele que só viaja em excursões – tem olhos, e olhos servem para ver. Digamos que alguém vá a Paris, Londres ou Estocolmo. Ao pegar um ônibus urbano, pode ocorrer que pegue um daqueles que inclinam um lado para o passageiro subir. Por mais curto que este alguém seja, vai perceber que há países onde o ônibus se inclina para facilitar seu embarque. Então surge a pergunta: por que em meu país os ônibus não se inclinam para que eu suba?
Quando voltei da Suécia, em 72, fui convidado para uma entrevista na televisão pelo jornalista Ernani Bês. Fui à emissora, fiquei esperando em uma sala, o programa entrou no ar e nada de ser chamado. Perguntei o que estava ocorrendo.
- É a policial federal. Há dois agentes aqui que não querem tua entrevista.
Fui falar com os policiais. Qual é a restrição? Não sou comunista, não vou falar de socialismo nem países socialistas, a entrevista é sobre a Suécia.
- Você não pode comparar.
Estavam ali para proibir qualquer comparação entre Suécia e Brasil. Que não se preocupassem. Eu pretendia falar apenas da Suécia. A entrevista finalmente saiu e as comparações – inevitáveis – ficaram com o telespectador. Se eu dizia que todo cidadão sueco pagava até quinze coroas em medicamentos – o que fosse além das quinze era subsidiado pelo Estado – é claro que lá do outro lado da tela o brasileiro se perguntava: e por que eu tenho de pagar tudo?
Comparar também é perigoso.
Nos anos 70, o que mais atraía turistas à Suécia era a propalada liberdade sexual, divulgada até mesmo por instituições oficiais para atrair mão-de-obra imigrante ao país. A Suécia foi o primeiro país europeu a liberar a pornografia e era procurada pelos liveshows, espetáculos em que atores faziam sexo em um teatro e os assistentes eram muitas vezes convidados a participar da festa. (Aqui no Brasil, livrinho sueco dava cadeia, como se constituísse uma ameaça às instituições do país). Além da pornografia, o bem-estar da social-democracia nórdica era sua segunda marca registrada. Mas não foi a pornografia nem o bem-estar social o que mais me marcou na Suécia. E sim um pequeno incidente do cotidiano.
Fui postar uma carta. Na fenda de uma caixa automática, pus uma moeda de duas coroas. Em vez de uma cartela com selos, recebi de volta um impresso com um pedido de desculpas. Não havia mais selos na caixa. Para recuperar minhas coroas – ou os selos – teria de telefonar para um número X.
Decidi pagar para ver. Estava na Suécia há menos de um mês e falava o sueco precariamente. Os problemas começaram com meu nome, que na língua lá deles se pronuncia Ianér. Do outro lado da linha, uma voz me pediu para soletrá-lo. E como é que diz jota em sueco? Pacientemente, a moça aventou outras palavras. Confirmei a letra que, descobri então, pronunciava-se "ií". Mas o pior estava por vir. Eu morava na Öregrundsgatan, informação que tampouco foi fácil de passar. Muito bem – disse a moça – amanhã, às 11hs, o senhor receberá o equivalente, em selos, a duas coroas. O senhor prefere a série do rei ou a série da ponte?
Recém-chegado naquelas bandas, apenas balbuciando o idioma local, eu preferia mesmo era piedade. Qualquer uma, respondi. Dia seguinte, mal passavam dois ou três minutos das onze, o carteiro enfia um envelope em minha porta. Nele vinham os selos, série do rei, com um compungido pedido de desculpas dos Correios.
Estou na Europa! – pensei, incrédulo. Este terá sido o episódio mais marcante de meus dias de Suécia. Lá, o Estado respeitava os direitos mínimos do cidadão. Um ano depois, encerradas minhas deambulações por aqueles nortes, voltei ao Brasil. Em Porto Alegre, fui telefonar de um orelhão e a máquina engoliu a ficha. Chamei a CRT, expliquei o caso, perguntei como devia fazer para telefonar. Ora, ponha outra ficha – me respondeu a moça.
Subi em meus tamancos. Eu quero a minha ficha de volta. A moça disse nada poder fazer. Pedi para falar com seu superior. Ela me passou alguém que também me sugeriu pôr outra ficha. Respondi que não pretendia pôr ficha nenhuma, queria a minha de volta, etc., pedi falar para com seu superior, falei com outro superior, repetiu-se toda a lenga-lenga e esta terceira e última instância me bateu o telefone na cara. Indignado, fui à televisão reivindicar meus direitos. O próprio jornalista que comentou o fato deveria estar pensando que eu havia voltado pirado da Escandinávia, contaminado talvez por alguma escandinavite aguda.
Nada disso. Eu havia vivido em um país onde o cidadão era respeitado. Para um brasileiro, isto era mais marcante que qualquer liveshow. Não por acaso, os países socialistas proibiam seus cidadãos de viajar à Europa ocidental. O viajante voltaria comparando.
Por que um operário, alemão como eu e meu vizinho – perguntava-se o alemão oriental – pode comprar na hora um Mercedes e eu tenho de esperar cinco anos para comprar um Trabant? Por que os dentistas usam anestesia em outros países, enquanto eu tenho de extrair dentes sem anestesia? Por que as universidades européias têm máquinas de xerox à disposição dos alunos e eu tenho de registrar na polícia até mesmo uma máquina datilográfica? Estas notícias não chegavam apenas a partir das viagens de ocidentais a seus parentes do outro lado, mas também através da televisão e do rádio que conseguiam burlar fronteiras. Os soviéticos consideravam um perigo viajar. E por isso proibiam as viagens.
Mais tarde ocorreu o inverso. O PC português, por exemplo, proibia seus militantes de ir a Moscou. Ao voltar, eles nada queriam saber com o comunismo.
De fato, viajar é perigoso. Viajar leva a comparar. E comparar leva a pensar. Melhor ficar em Dom Pedrito.
por Janer Cristaldo
http://cristaldo.blogspot.com.
Em uma discussão no Facebook, ouvi de uma conterrânea uma frase curiosa: viajar é perigoso. Dado o contexto – discutíamos questões de Dom Pedrito -, a moça não falava dos riscos usuais de uma viagem, tipo queda de avião, doença no estrangeiro, roubo, perda de bagagens. Nada disso. A moça se referia ao risco de o viajante adquirir senso crítico. Ora, esta é a mais nobre motivação de uma viagem.
A frase que vou citar é de Chesterton e nada tem de novo para quem me acompanha: não se conhece uma catedral permanecendo dentro dela. Você não conhece seu país se dele não sair. Muito menos sua cidade. Para mim, sair do Brasil foi fundamental para conhecer o Brasil. O homem não conhece exatamente valorando. O homem só conhece comparando.
Viajar ilustra, costuma dizer-se. É verdade, embora haja pessoas que podem dar voltas ao mundo e não vão aprender nada. Mas o mais inculto dos viajantes – mesmo aquele que só viaja em excursões – tem olhos, e olhos servem para ver. Digamos que alguém vá a Paris, Londres ou Estocolmo. Ao pegar um ônibus urbano, pode ocorrer que pegue um daqueles que inclinam um lado para o passageiro subir. Por mais curto que este alguém seja, vai perceber que há países onde o ônibus se inclina para facilitar seu embarque. Então surge a pergunta: por que em meu país os ônibus não se inclinam para que eu suba?
Quando voltei da Suécia, em 72, fui convidado para uma entrevista na televisão pelo jornalista Ernani Bês. Fui à emissora, fiquei esperando em uma sala, o programa entrou no ar e nada de ser chamado. Perguntei o que estava ocorrendo.
- É a policial federal. Há dois agentes aqui que não querem tua entrevista.
Fui falar com os policiais. Qual é a restrição? Não sou comunista, não vou falar de socialismo nem países socialistas, a entrevista é sobre a Suécia.
- Você não pode comparar.
Estavam ali para proibir qualquer comparação entre Suécia e Brasil. Que não se preocupassem. Eu pretendia falar apenas da Suécia. A entrevista finalmente saiu e as comparações – inevitáveis – ficaram com o telespectador. Se eu dizia que todo cidadão sueco pagava até quinze coroas em medicamentos – o que fosse além das quinze era subsidiado pelo Estado – é claro que lá do outro lado da tela o brasileiro se perguntava: e por que eu tenho de pagar tudo?
Comparar também é perigoso.
Nos anos 70, o que mais atraía turistas à Suécia era a propalada liberdade sexual, divulgada até mesmo por instituições oficiais para atrair mão-de-obra imigrante ao país. A Suécia foi o primeiro país europeu a liberar a pornografia e era procurada pelos liveshows, espetáculos em que atores faziam sexo em um teatro e os assistentes eram muitas vezes convidados a participar da festa. (Aqui no Brasil, livrinho sueco dava cadeia, como se constituísse uma ameaça às instituições do país). Além da pornografia, o bem-estar da social-democracia nórdica era sua segunda marca registrada. Mas não foi a pornografia nem o bem-estar social o que mais me marcou na Suécia. E sim um pequeno incidente do cotidiano.
Fui postar uma carta. Na fenda de uma caixa automática, pus uma moeda de duas coroas. Em vez de uma cartela com selos, recebi de volta um impresso com um pedido de desculpas. Não havia mais selos na caixa. Para recuperar minhas coroas – ou os selos – teria de telefonar para um número X.
Decidi pagar para ver. Estava na Suécia há menos de um mês e falava o sueco precariamente. Os problemas começaram com meu nome, que na língua lá deles se pronuncia Ianér. Do outro lado da linha, uma voz me pediu para soletrá-lo. E como é que diz jota em sueco? Pacientemente, a moça aventou outras palavras. Confirmei a letra que, descobri então, pronunciava-se "ií". Mas o pior estava por vir. Eu morava na Öregrundsgatan, informação que tampouco foi fácil de passar. Muito bem – disse a moça – amanhã, às 11hs, o senhor receberá o equivalente, em selos, a duas coroas. O senhor prefere a série do rei ou a série da ponte?
Recém-chegado naquelas bandas, apenas balbuciando o idioma local, eu preferia mesmo era piedade. Qualquer uma, respondi. Dia seguinte, mal passavam dois ou três minutos das onze, o carteiro enfia um envelope em minha porta. Nele vinham os selos, série do rei, com um compungido pedido de desculpas dos Correios.
Estou na Europa! – pensei, incrédulo. Este terá sido o episódio mais marcante de meus dias de Suécia. Lá, o Estado respeitava os direitos mínimos do cidadão. Um ano depois, encerradas minhas deambulações por aqueles nortes, voltei ao Brasil. Em Porto Alegre, fui telefonar de um orelhão e a máquina engoliu a ficha. Chamei a CRT, expliquei o caso, perguntei como devia fazer para telefonar. Ora, ponha outra ficha – me respondeu a moça.
Subi em meus tamancos. Eu quero a minha ficha de volta. A moça disse nada poder fazer. Pedi para falar com seu superior. Ela me passou alguém que também me sugeriu pôr outra ficha. Respondi que não pretendia pôr ficha nenhuma, queria a minha de volta, etc., pedi falar para com seu superior, falei com outro superior, repetiu-se toda a lenga-lenga e esta terceira e última instância me bateu o telefone na cara. Indignado, fui à televisão reivindicar meus direitos. O próprio jornalista que comentou o fato deveria estar pensando que eu havia voltado pirado da Escandinávia, contaminado talvez por alguma escandinavite aguda.
Nada disso. Eu havia vivido em um país onde o cidadão era respeitado. Para um brasileiro, isto era mais marcante que qualquer liveshow. Não por acaso, os países socialistas proibiam seus cidadãos de viajar à Europa ocidental. O viajante voltaria comparando.
Por que um operário, alemão como eu e meu vizinho – perguntava-se o alemão oriental – pode comprar na hora um Mercedes e eu tenho de esperar cinco anos para comprar um Trabant? Por que os dentistas usam anestesia em outros países, enquanto eu tenho de extrair dentes sem anestesia? Por que as universidades européias têm máquinas de xerox à disposição dos alunos e eu tenho de registrar na polícia até mesmo uma máquina datilográfica? Estas notícias não chegavam apenas a partir das viagens de ocidentais a seus parentes do outro lado, mas também através da televisão e do rádio que conseguiam burlar fronteiras. Os soviéticos consideravam um perigo viajar. E por isso proibiam as viagens.
Mais tarde ocorreu o inverso. O PC português, por exemplo, proibia seus militantes de ir a Moscou. Ao voltar, eles nada queriam saber com o comunismo.
De fato, viajar é perigoso. Viajar leva a comparar. E comparar leva a pensar. Melhor ficar em Dom Pedrito.