Ruy: por falar em pai - hoje é o dia deles, segundo os
rituais - o meu tinha o costume de guardar em livros o escasso dinheiro que
sobrava, depois de pagar as contas de fim de mês. Era troco, mas que dava para
as despesas do dia-a-dia, numa casa em que nunca se teve muito, mas também não
faltava o essencial, até porque a gente se contentava com pouco. Os “cofres”
ficavam localizados em lugares estratégicos, no escritório de advocacia
contíguo à sala de estar.
Já principiado nos prazeres da vida, e por isso
precisando cada vez mais do vil metal para realizá-los, tratei de desvendar o
segredo das fortalezas, e o Afifão nunca mais teve sossego! Primeiramente,
notei que as arcas eram todas de capa dura e cor avermelhada, o que não
resolvia muita coisa, na medida em que as enormes e antigas coleções de livros
jurídicos pendiam sempre para o encarnado. Mas já era um bom começo, para quem
tentava, havia tempo, decifrar sem sucesso o mistério da nascente do erário.
Depois, chamou-me a atenção o fato de que em alguns deles começava a quebrar a
borda da parte de cima. Eureca, descobri, só podia ser isto: de tanto o tesouro
ser retirado da estante, era natural que apresentasse algum desgaste físico que
se tornasse visível a olho nu. Ligando uma coisa à outra, o degas aqui passou a
ter acesso à fonte de receita do velho. Como nunca fui egoísta, e por questão
de hierarquia, transmiti o achado para a Isabel, minha irmã mais velha, e até
para a mãe, que, muito adulona, levou queimando a descoberta aos ouvidos do
dono dos haveres. Não é preciso dizer que o depósito foi embora do escritório,
e eu perdi por completo o caminho da roça.
Pois não é que um dia me apertei dos cobres e pedi dez
reais emprestado ao Santhiago, meu guri, com nove anos à época. Ele concordou
com o auxílio, mas com uma condição que não abria mão por nada deste mundo: que
eu virasse de costas para a sua coleção do Mundo Juvenil, estrategicamente
localizada embaixo da cama, porque não podia saber em qual deles dormia a moeda
circulante.
E aí me deu uma saudade do meu pai, uma vontade de beijar
aquele rosto que vi envelhecer aos poucos e que foi tão meu, de me encolher no
seu peito grisalho, como fazia quando ia dormir com ele em noite de chuva miúda
lá no Lajeado Grande, que desisti do empréstimo e saí do quarto chorando. O
Santhi veio atrás preocupado, perguntando o que tinha acontecido, o que fizera
de errado. Não é nada, filho! É que hoje eu fiquei sabendo sem querer que os
cofres também são genéticos. Eles têm uma alma tão linda que passa de avô para
neto e até coração, que a gente não vê, mas sente como uma cálida lembrança.