segunda-feira, 8 de maio de 2017

AINDA A POLÊMICA BELCHIOR - TEXTO DE ROSANE DE OLIVEIRA


A romantização do calote


Fã de Belchior, fiquei incomodada com a glamourização de seus deslizes, como se os ídolos tivessem direito a uma ética diferente da exigida dos mortais 


Perdi uma excelente oportunidade de ficar calada na segunda-feira passada, quando disse, no ar, que a morte de Belchior não me comovia como a de outros artistas, porque, de certa forma, era como se ele já estivesse morto há vários anos. Com razão, ouvintes protestaram pela minha insensibilidade, mas passei a semana inteira intrigada com algumas coisas que ouvi sobre o grande compositor cearense e, por imprudência volto ao assunto. Mexer com mitos é pedir para entrar numa briga sem ser convidada.

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Sou fã de Belchior. É um dos grandes poetas da música popular brasileira. Digo é, porque os poetas não morrem e podemos ouvir sempre os cantores de que gostamos. Elis Regina cantando Como nossos Pais, um dos clássicos dele, me arrepia sempre que ouço. O que me incomodou nos tributos ao ídolo foi a tolerância com os deslizes, como se aos gênios tudo fosse permitido – do abandono dos filhos ao não pagamento das contas.

 

Houve uma certa glamourização do calote, como se o cantor tivesse simplesmente abdicado dos bens materiais para viver numa aldeia remota, plantando para comer. Mesmo tendo fãs dispostos a acolhê-lo, como fizeram nos últimos anos os amigos de Santa Cruz, Belchior deixou dívidas em hotéis. Fugiu para não ser preso por não pagar pensão alimentícia. Deixou na mão o empregado que cuidava do seu escritório. Esses deslizes mundanos em nada diminuem a qualidade de sua obra, mas não podem ser romantizados, sob pena de passarmos aos nossos filhos a ideia equivocada de que os ídolos têm direito a uma ética diferente dos mortais.

O grande Belchior não foi abandonado por seu público. Tampouco foi perseguido em pleno século 21. Desistiu de fazer shows e de produzir por razões que só ele deveria saber. Seus contemporâneos seguem trabalhando e encantando os fãs. Paulinho da Viola, Chico Buarque e Caetano Veloso, por exemplo, já poderiam estar aposentados, mas seguem na ativa. Eu não me incomodaria de pagar o vinho e o jantar para qualquer um dos três, mas ficaria decepcionada se soubesse que deixaram de pagar as contas ou que abandonaram os filhos como quem deixa pelo caminho uma carga incômoda.