DO GRUNHIDO À PALAVRA
Franklin
Cunha
(
Palestra proferida na Semana Cultural de Canoas, 1999)
Ao
vos cumprimentar com palavras que lhes parecem agradáveis, vocês estão tomando
parte de uma das maravilhas do mundo natural. Isto porque somos de uma espécie
que possui uma engenhosa habilidade:
podemos descrever eventos, idéias, sentimentos e transmiti-los aos
outros com grande precisão. Esta habilidade chama-se linguagem. Simplesmente,
fazendo ruídos com a boca, expressamos novas e precisas combinações de idéias e
as fizemos chegar até à mente de nossos semelhantes.
A
capacidade humana de apreender, falar e entender uma língua, é considerada a
mais importante invenção cultural da humanidade, o exemplo mais sofisticado de
usar símbolos, um evento biológico sem precedentes e que nos separa do reino
animal.
ORIGEM DA LINGUAGEM
O estudo
de um gen contido no DNA, mostra que nas várias espécies hoje viventes, se
acumularam mutações que podem facilmente
ser contadas. A análise da diferença das mutações acumuladas entre duas
espécies, permite calcular o tempo evolutivo que as separa. Este modo de
calcular o tempo das evoluções animais toma o nome de relógio molecular.
Isto
nos mostra que devemos retroceder há cerca de cinco milhões de anos para encontrar
um antepassado comum do homem e de nosso primo mais próximo, o chipanzé. O
primeiro de nossos avós considerado digno de pertencer ao gênero Homo viveu há cerca de 2,5 milhões de
anos ( H. habilis). Construía objetos e instrumentos de pedra e era bípede. Foi
seguido do Homo erectus, nosso primeiro antepassado a entrar na
Europa., há cerca de 2 milhões de anos. Seu crânio era maior que o dos seus
antecessores, mas só com o seu sucessor o Homo
sapiens, o volume cerebral se tornou
quase igual ao do homem atual.No entanto faz apenas cem mil anos que a anatomia
cerebral acabou por ter uma conformação igual à do homem moderno
Comparando
o cérebro humano com um computador, podemos dizer que o hardware cresceu muito mas não o suficiente. Foi preciso que o software se modificasse e se tornasse
mais sofisticado e poderoso, possibilitando o aparecimento da inovação mais
importante que distingue o homem de nossos longínquos parentes: a comunicação
através da linguagem.
UMA
CONQUISTA EVOLUTIVA
A
denominação de nossa espécie - Homo
sapiens - sugere que o grande atributo dos seres humanos é a capacidade
inigualável da cognição. E uma delas, é a da linguagem.
É fícil apontar com precisão como e quando ela
evoluiu. Não obstante está claro que três alterações devem ter surgido no homem
para torná-la possível: o volume cerebral, uma estrutura neural característica
e certas alterações do trato vocal ( aparelho fonador). Estas alterações já
existiam no Homo erectus há cerca de 500.000 anos. Embora tais estruturas
anatômicas, pré-requisitos para a linguagem, possam ter surgido num passado tão
distante, a maioria dos lingüistas
acredita que a capacidade da fala só surgiu há cerca de 100.000 anos.
As
teorias gestuais propõem que a linguagem evoluiu a partir de um sistema de
gestos tornado possível quando um grupo de macacos assumiu a posição
ereta , liberando as mãos para a comunicação social. Posteriormente, a
comunicação vocal pode ter surgido para liberar as mãos com fins outros tais
como a fabricação de instrumentos, a luta, o afago afetuoso, etc.
As
teorias vocais afirmam que a linguagem evoluiu a partir de um grupo extenso de grunhidos e gritos
instintivos, que exprimiam estados emocionais como os de dor, alegria, medo,
excitação, ansiedade, etc.
A
terceira possibilidade, é que a linguagem pode ter surgido da co-evolução dos
gestos e da vocalização. Essa possibilidade, poderia explicar a correlação
entre a dominância para o uso preferencial de uma das mãos (lateralidade) e da
linguagem verbal e gestual, todas localizadas no hemisfério cerebral
esquerdo.
Na
realidade, depois de os hominídeos terem
assumido a postura bípede, ocorreram certas alterações
na
estrutura dos seus crânios. Estas
alterações vieram garantir uma base morfológica para a evolução de uma peça da
anatomia, exclusivamente humana, o espaço supra-glótico, o qual atinge a maturidade nas crianças quando
se dá a descida da laringe. Para evitar
a sufocação quando os seres humanos comem, é necessário que uma estrutura
chamada epiglote se feche, separando a
laringe da faringe. Ao contrário dos outros animais, não podemos emitir
sons e engolir sem nos sufocarmos.
Fazendo
parte deste desenvolvimento evolutivo, surgiram modificações nas cordas vocais,
língua, palato e dentes, afim de
permitir um melhor controle do fluxo aéreo através das cordas vocais, o qual,
por sua vez, possibilitou a produção de sons articulados, os fonemas.
Paralelamente,
surgiram no hemisfério esquerdo, regiões corticais especializadas, as áreas de
Brocca e de Wernicke. Estas estabeleceram
a comunicação entre as áreas acústica, motora e conceitual do cérebro.
Através destas ligações, as áreas de Brocca e Wernicke serviram para coordenar
a produção e organização da fala. Além disso, forneceram um sistema para o
desenvolvimento de um novo tipo de memória capaz de reorganizar os fonemas ( as
unidades fundamentais da fala), assim como a respectiva ordem.
É
razoável supor que a fonologia surgiu pela primeira vez, numa comunidade
falante que usava frases primitivas afim de realizar trocas e experiências.
Nessa comunidade primitiva, as expressões relacionavam os nomes com os objetos,
estabelecendo os primórdios da semântica. É importante assinalar que a
capacidade preexistente para produzir conceitos, forneceu a base necessária
para estes progressos semânticos.
A
sintaxe - organização das palavras dentro da frase - desenvolveu-se obedecendo
uma ordem.
Em
primeiro lugar, a capacidade fonológica foi ligada aos conceitos e aos gestos
através da aprendizagem, o que permitiu o desenvolvimento da semântica. Esse
desenvolvimento facilitou a acumulação
de um léxico, isto é, palavras e frases com significado. A sintaxe
emergiu depois, unindo a aprendizagem conceitual com a aprendizagem lexical.
Assim,
para poder construir a sintaxe ou as bases da gramática, o cérebro formou estruturas as quais possibilitaram o
aparecimento da semântica antes da sintaxe por meio da relação dos símbolos
fonológicos com os conceitos. Quando o homem conseguiu reunir um léxico
suficientemente grande, as áreas conceituais do cérebro categorizaram a ordem
que os elementos da fala deviam tomar, ordem essa que foi depois estabilizada
na memória e que, como vimos, se chama sintaxe. Ë evidente que esta ordem ou
seqüência, uma vez estabelecida se tornou automática, tal como acontece com
muitos atos motores.
De
qualquer forma, a origem da linguagem é de difícil localização no tempo. As
estruturas cerebrais e do aparelho fonador como já afirmamos, parecem ter
iniciado sua evolução a partir de 500.000 mil anos, no entanto, a capacidade da
fala somente surgiu há cerca de 100.000 anos.
Provavelmente, a linguagem evoluiu a partir de um sistema de gestos
tornados possíveis quando um grupo de
proto-hominídeos assumiu a posição ereta, liberando as mãos para a comunicação
social e fabricação de objetos de uso para a caça e coleta. Daí em diante, a
linguagem evoluiu com a criaçao de um
extenso conjunto de grunhidos e gritos instintivos que exprimiam estados
emocionais, como os de mal-estar, alegria, pavor, dor, excitação sexual, etc.
Os arranjos anatômicos do aparelho fonador, possibilitaram a emissão de sons
articulados, usados criativamente em combinações cada vez mais numerosas e
expressivas. Quando esses ancestrais humanos se dispersaram em colônias separadas,
desenvolveram-se diferentes sistemas de sons que graças ao isolamento
geográfico e de acordo com as diversificadas ecologia, cultura e estilos de
vida, originaram o que chamamos de linguagem. Na realidade, um sistema de sons
arbitrariamente estabelecidos para nomear objetos, animais, sentimentos e idéias.
A linguagem é inata ou apreendida?
Lingüistas
e psicólogos acreditam atualmente que a aquisição da linguagem é determinados
pela estrutura inata do cérebro humano, o qual está preparado para apreender e
usar a fala. A língua específica que será falada, bem como o dialeto e o
sotaque, são determinados pelo ambiente sócio-cultural.
É
óbvio que uma língua tem de ser apreendida. Mas ela não é ensinada no sentido
comum do ensino. Noam Chomsky, afirma
que o homem possui um mecanismo inato para a aquisição da linguagem, um
programa neural que o prepara para a aquisição de uma língua, ou de várias.
Como a aranha que elabora uma intricada e delicada teia ou a abelha que
constroe favos com hexágonos perfeitos, o homem já nasce com um programa
lingüístico ou como ele diz, com uma gramática universal, impressa como um
software em seu cérebro.
Embora
a aquisição da linguagem envolva o aprendizado por imitação, os estudos sobre a
localização anatômica e desenvolvimento da mesma em crianças, fornecem
indicações de que grande parte desse processo é inato.
Existem
regularidades universais na aquisição da linguagem. As crianças progridem do
balbucio à fala de uma palavra, de várias palavras, depois aprendem a organizá-las
na frase (sintaxe), até a fala completa. Existe um período crítico para o
desenvolvimento da linguagem, tanto da verbal como da gestual que vai dos dois
anos até a puberdade. Após, a capacidade para o aprendizado da linguagem
diminui dramaticamente. Muito embora uma segunda língua possa ser apreendida
mais tarde, não só é mais difícil fazê-lo como é impossível perder o sotaque
original.
Provavelmente,
esse período crítico do desenvolvimento corresponde à maturação do cérebro.
Durante esse período, as crianças apreendem as regras de sua língua nativa por
imitação. A maior parte dessas regras, a gramática da língua já é, contudo,
compreendida no momento em que a criança começa a formar frases.( conjuga
verbos, pluraliza, faz concordância, sabe o gênero dos substantivos).
Uma
criança de três anos é um gênio gramatical, embora seja totalmente incapaz de
apreciar e interpretar artes visuais, os ícones de um computador, sinais de tráfego,
os quatro pontos cardeais, notas musicais, cores etc.
Segundo
Chomsky, existe uma região cerebral, bem
como mecanismos neurais específicos para a aquisição da linguagem. As crianças
são capazes de compreender algumas das
regras abstratas necessárias para a linguagem antes de aprenderem a
falar.
Como
diz Steven Pinker, o homem já nasce com o instinto da linguagem. ( The Language
Instinct - How the Mind Creates Language).
In
finis, como diz o mesmo autor: “A linguagem não é a inefável e milagrosa
essência de uma exclusividade humana, mas, simplesmente, uma adaptação
biológica para comunicar informações necessárias à sobrevivência da espécie”.
Como
os cornos nos bovídeos, o longo pescoço na girafa, as mudanças de cor nos
camaleões, a linguagem surgiu como um estratégia de sobrevivência neste ramo de
chipanzés do qual derivamos. Porém, antes de tudo e principalmente, o que
separou o homem dos animais foi sua
capacidade de abstração e foi ela que permitiu o aparecimento da linguagem.
A
linguagem é, assim, do ponto de vista psicológico, a atribuição de um valor
simbólico ao sinal, processo que se funda antes de mais nada na abstração. Por
isso mesmo, a fala humana se distingue da “fala”dos animais. Esta seria “natural”, enquanto a linguagem do homem é
“
artificial”e “convencional”, derivada da nossa capacidade abstrativa..
Bibliografia:
El conocimento del lenguage – Noam Chomsky - Altaya – Barcelona 1994
The Langauge Instinct – How
the Mind Create Language – S. Pinker – Harper Perennial, 1995
Como a Mente
Funciona – S. Pinker – Cia das Letras, 1997
The Symbolic Species – The Co-Evolution of Language
and the Brain – T. Deacon – W.W. Norton & Co., 1997, N.York
Tha Adapted
Mind – Evolutionary Psychology and the Generation of Culture = J. Barkow, L.
Cosmides, J. Tooby – Oxford Un. Press, 1992, Oxford