sábado, 8 de novembro de 2014

SOBRE A LINGUAGEM - ARTIGO DO DR. FRANKLIN CUNHA


DO GRUNHIDO À PALAVRA

Franklin Cunha

( Palestra proferida na Semana Cultural de Canoas, 1999)

Ao vos cumprimentar com palavras que lhes parecem agradáveis, vocês estão tomando parte de uma das maravilhas do mundo natural. Isto porque somos de uma espécie que possui uma engenhosa habilidade:  podemos descrever eventos, idéias, sentimentos e transmiti-los aos outros com grande precisão. Esta habilidade chama-se linguagem. Simplesmente, fazendo ruídos com a boca, expressamos novas e precisas combinações de idéias e as fizemos chegar até à mente de nossos semelhantes.

A capacidade humana de apreender, falar e entender uma língua, é considerada a mais importante invenção cultural da humanidade, o exemplo mais sofisticado de usar símbolos, um evento biológico sem precedentes e que nos separa do reino animal.

 

ORIGEM DA LINGUAGEM

                                     O estudo de um gen contido no DNA, mostra que nas várias espécies hoje viventes, se acumularam  mutações que podem facilmente ser contadas. A análise da diferença das mutações acumuladas entre duas espécies, permite calcular o tempo evolutivo que as separa. Este modo de calcular o tempo das evoluções animais toma o nome de relógio molecular. 

Isto nos mostra que devemos retroceder há cerca de cinco milhões de anos para encontrar um antepassado comum do homem e de nosso primo mais próximo, o chipanzé. O primeiro de nossos avós considerado digno de pertencer ao gênero Homo viveu há cerca de 2,5 milhões de anos ( H. habilis). Construía objetos e instrumentos de pedra e era bípede. Foi seguido do Homo erectus,  nosso primeiro antepassado a entrar na Europa., há cerca de 2 milhões de anos. Seu crânio era maior que o dos seus antecessores, mas só com o seu sucessor o Homo sapiens,  o volume cerebral se tornou quase igual ao do homem atual.No entanto faz apenas cem mil anos que a anatomia cerebral acabou por ter uma conformação igual à do homem moderno

Comparando o cérebro humano com um computador, podemos dizer que o hardware cresceu muito mas não o suficiente. Foi preciso que o software se modificasse e se tornasse mais sofisticado e poderoso, possibilitando o aparecimento da inovação mais importante que distingue o homem de nossos longínquos parentes: a comunicação através da linguagem.

 

UMA CONQUISTA EVOLUTIVA

 

A denominação de nossa espécie - Homo sapiens - sugere que o grande atributo dos seres humanos é a capacidade inigualável da cognição. E uma delas, é a da linguagem.       

É  fícil apontar com precisão como e quando ela evoluiu. Não obstante está claro que três alterações devem ter surgido no homem para torná-la possível: o volume cerebral, uma estrutura neural característica e certas alterações do trato vocal ( aparelho fonador). Estas alterações já existiam no  Homo erectus há cerca de 500.000 anos. Embora tais estruturas anatômicas, pré-requisitos para a linguagem, possam ter surgido num passado tão distante, a maioria dos lingüistas  acredita que a capacidade da fala só surgiu há cerca de 100.000 anos.

 

As teorias gestuais propõem que a linguagem evoluiu a partir de um sistema de gestos  tornado possível  quando um grupo de macacos assumiu a posição ereta , liberando as mãos para a comunicação social. Posteriormente, a comunicação vocal pode ter surgido para liberar as mãos com fins outros tais como a fabricação de instrumentos, a luta, o afago afetuoso, etc.

As teorias vocais afirmam que a linguagem evoluiu a partir  de um grupo extenso de grunhidos e gritos instintivos, que exprimiam estados emocionais como os de dor, alegria, medo, excitação, ansiedade, etc.

A terceira possibilidade, é que a linguagem pode ter surgido da co-evolução dos gestos e da vocalização. Essa possibilidade, poderia explicar a correlação entre a dominância para o uso preferencial de uma das mãos (lateralidade) e da linguagem verbal e gestual, todas localizadas no hemisfério cerebral esquerdo. 

 

 

 

 

Na realidade, depois de os hominídeos  terem assumido a postura bípede, ocorreram certas alterações

na estrutura  dos seus crânios. Estas alterações vieram garantir uma base morfológica para a evolução de uma peça da anatomia, exclusivamente humana, o espaço supra-glótico, o  qual atinge a maturidade nas crianças quando se  dá a descida da laringe. Para evitar a sufocação quando os seres humanos comem, é necessário que uma estrutura chamada epiglote se feche,  separando a laringe da faringe. Ao contrário dos outros animais, não podemos emitir sons  e engolir sem nos sufocarmos.  

Fazendo parte deste desenvolvimento evolutivo, surgiram modificações nas cordas vocais, língua, palato e  dentes, afim de permitir um melhor controle do fluxo aéreo através das cordas vocais, o qual, por sua vez, possibilitou a produção de sons articulados, os fonemas.

Paralelamente, surgiram no hemisfério esquerdo, regiões corticais especializadas, as áreas de Brocca e de Wernicke. Estas estabeleceram  a comunicação entre as áreas acústica, motora e conceitual do cérebro. Através destas ligações, as áreas de Brocca e Wernicke serviram para coordenar a produção e organização da fala. Além disso, forneceram um sistema para o desenvolvimento de um novo tipo de memória capaz de reorganizar os fonemas ( as unidades fundamentais da fala), assim como a respectiva ordem. 

É razoável supor que a fonologia surgiu pela primeira vez, numa comunidade falante que usava frases primitivas afim de realizar trocas e experiências. Nessa comunidade primitiva, as expressões relacionavam os nomes com os objetos, estabelecendo os primórdios da semântica. É importante assinalar que a capacidade preexistente para produzir conceitos, forneceu a base necessária para estes progressos semânticos.

A sintaxe - organização das palavras dentro da frase - desenvolveu-se obedecendo uma ordem.

Em primeiro lugar, a capacidade fonológica foi ligada aos conceitos e aos gestos através da aprendizagem, o que permitiu o desenvolvimento da semântica. Esse desenvolvimento facilitou a acumulação  de um léxico, isto é, palavras e frases com significado. A sintaxe emergiu depois, unindo a aprendizagem conceitual com a aprendizagem lexical.

Assim, para poder construir a sintaxe ou as bases da gramática, o cérebro formou  estruturas as quais possibilitaram o aparecimento da semântica antes da sintaxe por meio da relação dos símbolos fonológicos com os conceitos. Quando o homem conseguiu reunir um léxico suficientemente grande, as áreas conceituais do cérebro categorizaram a ordem que os elementos da fala deviam tomar, ordem essa que foi depois estabilizada na memória e que, como vimos, se chama sintaxe. Ë evidente que esta ordem ou seqüência, uma vez estabelecida se tornou automática, tal como acontece com muitos atos motores.

 

 

De qualquer forma, a origem da linguagem é de difícil localização no tempo. As estruturas cerebrais e do aparelho fonador como já afirmamos, parecem ter iniciado sua evolução a partir de 500.000 mil anos, no entanto, a capacidade da fala somente surgiu há cerca de 100.000 anos.  Provavelmente, a linguagem evoluiu a partir de um sistema de gestos tornados  possíveis quando um grupo de proto-hominídeos assumiu a posição ereta, liberando as mãos para a comunicação social e fabricação de objetos de uso para a caça e coleta. Daí em diante, a linguagem evoluiu com a criaçao  de um extenso conjunto de grunhidos e gritos instintivos que exprimiam estados emocionais, como os de mal-estar, alegria, pavor, dor, excitação sexual, etc. Os arranjos anatômicos do aparelho fonador, possibilitaram a emissão de sons articulados, usados criativamente em combinações cada vez mais numerosas e expressivas. Quando esses ancestrais humanos se dispersaram em colônias separadas, desenvolveram-se diferentes sistemas de sons que graças ao isolamento geográfico e de acordo com as diversificadas ecologia, cultura e estilos de vida, originaram o que chamamos de linguagem. Na realidade, um sistema de sons arbitrariamente estabelecidos para nomear objetos, animais,  sentimentos e idéias.

 

 

 

 

A linguagem é inata ou apreendida?

 

Lingüistas e psicólogos acreditam atualmente que a aquisição da linguagem é determinados pela estrutura inata do cérebro humano, o qual está preparado para apreender e usar a fala. A língua específica que será falada, bem como o dialeto e o sotaque, são determinados pelo ambiente sócio-cultural. 

É óbvio que uma língua tem de ser apreendida. Mas ela não é ensinada no sentido comum do ensino. Noam Chomsky, afirma  que o homem possui um mecanismo inato para a aquisição da linguagem, um programa neural que o prepara para a aquisição de uma língua, ou de várias. Como a aranha que elabora uma intricada e delicada teia ou a abelha que constroe favos com hexágonos perfeitos, o homem já nasce com um programa lingüístico ou como ele diz, com uma gramática universal, impressa como um software em seu cérebro.

Embora a aquisição da linguagem envolva o aprendizado por imitação, os estudos sobre a localização anatômica e desenvolvimento da mesma em crianças, fornecem indicações de que grande parte desse processo é inato.

Existem regularidades universais na aquisição da linguagem. As crianças progridem do balbucio à fala de uma palavra, de várias palavras, depois aprendem a organizá-las na frase (sintaxe), até a fala completa. Existe um período crítico para o desenvolvimento da linguagem, tanto da verbal como da gestual que vai dos dois anos até a puberdade. Após, a capacidade para o aprendizado da linguagem diminui dramaticamente. Muito embora uma segunda língua possa ser apreendida mais tarde, não só é mais difícil fazê-lo como é impossível perder o sotaque original.

Provavelmente, esse período crítico do desenvolvimento corresponde à maturação do cérebro. Durante esse período, as crianças apreendem as regras de sua língua nativa por imitação. A maior parte dessas regras, a gramática da língua já é, contudo, compreendida no momento em que a criança começa a formar frases.( conjuga verbos, pluraliza, faz concordância, sabe o gênero dos substantivos). 

Uma criança de três anos é um gênio gramatical, embora seja totalmente incapaz de apreciar e interpretar artes visuais, os ícones de um computador, sinais de tráfego, os quatro pontos cardeais, notas musicais, cores etc.

Segundo Chomsky, existe uma região cerebral,  bem como mecanismos neurais específicos para a aquisição da linguagem. As crianças são capazes de compreender algumas das  regras abstratas necessárias para a linguagem antes de aprenderem a falar.  

Como diz Steven Pinker, o homem já nasce com o instinto da linguagem. ( The Language Instinct - How the Mind Creates Language).

In finis, como diz o mesmo autor: “A linguagem não é a inefável e milagrosa essência de uma exclusividade humana, mas, simplesmente, uma adaptação biológica para comunicar informações necessárias à sobrevivência da espécie”.

Como os cornos nos bovídeos, o longo pescoço na girafa, as mudanças de cor nos camaleões, a linguagem surgiu como um estratégia de sobrevivência neste ramo de chipanzés do qual derivamos. Porém, antes de tudo e principalmente, o que separou  o homem dos animais foi sua capacidade de abstração e foi ela que permitiu o aparecimento da linguagem.

A linguagem é, assim, do ponto de vista psicológico, a atribuição de um valor simbólico ao sinal, processo que se funda antes de mais nada na abstração. Por isso mesmo, a fala humana se distingue da “fala”dos animais. Esta seria  “natural”, enquanto a linguagem do homem é

“ artificial”e “convencional”, derivada da nossa capacidade abstrativa.. 

 

 

 

  Bibliografia:

El conocimento del lenguage – Noam Chomsky  - Altaya – Barcelona 1994

 The Langauge Instinct – How the Mind Create Language – S. Pinker – Harper Perennial, 1995

Como a Mente Funciona – S. Pinker – Cia das Letras, 1997

 The Symbolic Species – The Co-Evolution of Language and the Brain – T. Deacon – W.W. Norton & Co., 1997, N.York

 Tha Adapted Mind – Evolutionary Psychology and the Generation of Culture = J. Barkow, L. Cosmides, J. Tooby – Oxford Un. Press, 1992, Oxford