O projeto de lei que proíbe o uso de castigos corporais
em crianças e adolescentes, popularmente conhecido como Lei da Palmada, que
tanta celeuma anda causando, tem tudo para ser sacramentado
De minha parte, apanhei do meu pai, não nego. Mas tudo
muito breve – e praticamente indolor: uma ou duas chineladas e o educador dava
por finalizada a reprimenda. Com a cinta, lembro uma única vez da tentativa.
Sim, fui mais rápido e refugiei-me nas encostas do vestido materno. Porém,
reconheço, fiz por merecer. Levei a óbito, pelo método da esganadura
continuada, a caturrita tagarela da vizinha.
Conhecendo o meu pai, homem justo e sensível, sei que
doeu muito mais nele o que aconteceu nas poucas vezes em que perdeu as
estribeiras por minha causa. Passada a tormenta, tratava de me adular, com
convites para dormir “grudados” e ajuda financeira a fundo perdido. Em seguida,
aposentou o chinelo de couro rústico, até então utilizado como látego,
substituindo-o pela conversa demorada em torno de sua visão intimista sobre o
certo e o errado.
Conheci pirralhos, de puerícia idêntica à minha,
simplesmente “desmontados” a pau por seus pais. Um deles, já moço formado,
inclusive me confessou: se não apanhava todos os dias, parecia que lhe faltava
alguma coisa no lombo. Acostumou-se ao flagelo, à semelhança do boi manso
habituado à canga. A educação pelo sistema atávico era assim: se o grito não
surtia o efeito desejado, despontava o castigo corporal logo de atrás, soltando
fogo pelas ventas.
Hoje, não acalento a menor dúvida: bater em filho é coisa
primitiva, de gente ignorante, sem a mais tênue noção de civilidade. Se laço
resolvesse, haveria lugar de sobra nas cadeias, pois desconheço um só preso,
que, antes de se sepultar vivo nas masmorras do Estado, não tenha sido
espancado pelo pai ou pelo padrasto até sangrar.
Com meus filhos, aboli o açoite do rol das opções
corretivas. Não que nunca tivesse vontade de dar umas palmadas no traseiro das
pestinhas, principalmente no maior, meio arteiro pro meu gosto. É que, na única
vez que saí do sério pra valer e parti para a ignorância, os olhos do miúdo me
desarmaram. Sabe aquele olhar de pânico, semblante vitalício dos debilitados
orgânicos? Não era nada, se comparado ao que o guri me fitou ante a iminência
da agressão. Encolheu-se feito bicho do mato perto da porta do quarto, sem
ninguém para acudi-lo, pois éramos apenas os dois em casa. O algoz covarde e
enfurecido frente à pequena vítima encurralada, olhar algemado pelo medo.
Recuei, açulado pela agudeza de uma lucidez efêmera. Recobrado os sentidos,
voltei à carga com um abraço de corpo inteiro no moleque carinhoso, entranhas
irrigadas pelo mesmo sangue - e ele me respondeu com o pranto copioso dos
inocentes.
Imbricado nesse episódio, nem toda a oratória do mundo me
convence mais do que aquele olhar, próprio dos desprovidos de maldade e que só
os puros de sentimentos sabem ter. Agora entendo por que fotografia não precisa
de legenda. Somente na meninice somos nós; depois, seremos os outros. Num dia
qualquer, a vida - sempre ela – se encarregará de retirar o último fragmento de
nossa infância: o brilho dos olhos, esse que nem o Dr. Hollywood nos devolverá.
E quando se tratar de criança então, por pior que seja o deslize, nunca caberá
tamanha pena.