Ainda na fase de valorizar Natal, parábolas e histórias edificantes ou
divertidas, vou lembrar uma contada pelo Dô, meu cunhado, pai do Fernando
Adauto, da Ana Maria, do alemão Gilberto e do Guilherme. O apelido, última
sílaba acentuada do nome Fernando, fixara-se nos tempos em que atuava como
jogador de futebol e nas rodas boêmias, nas serenatas, ao exercitar voz e
violão. A verdade, é que suas visitas de noivo à Vera, na Estância do Sobrado,
eram muito festejadas pela gurizada da casa. Pois ele sabia muito bem alternar
música e histórias que se iam encaixando no imaginário de guris de campanha.
Algumas ficaram bem gravadas em minha memória, de onde seleciono, hoje, uma
delas, para compartilhar com os leitores.
Num
tempo que já vai longe, quando não havia automóvel e as viagens eram feitas na
base do cavalo, os gaúchos valorizavam a hospitalidade de uma forma comovente,
até porque, em alguma ocasião, dela poderiam depender. Mandar desencilhar,
servir mate e oferecer boia e pousada fazia parte do bem receber. É claro que
isso não dispensava minuciosa observação do paisano recém-chegado, da sua
montaria, das vestes e arreios, bem como do trato dispensado por ele à montaria
e aos pertences. Em alguns lugares, o tratamento incluía lavar os pés de quem
chegava, como ocorreu com o nosso viajante, que desde a madrugada cavalgava com
poucos intervalos para descansar, arrumar os arreios e beber água de sanga. O
fiambre, as galletas tinham sido devoradas havia algum tempo e a fome
não era pouca. Olhando para o sol e os horizontes, calculava o meio dia, e
ainda estava distante da estância que divisava ao longe. Não seria aconselhável
apressar a marcha, pois o cavalo, suado e arfante, dava mostras de cansaço em
dia quente de verão. Mas a sombra de arvoredo, casa, galpão e expectativa de
presença humana, reavivavam cavaleiro e montaria. Finalmente, anunciados pelo
latido dos cachorros, ouviu-se um Ô de casa do chegante, enquanto
alguns peões saiam pela porta do galpão e o patrão se aproximava, respondendo à
saudação de Laus Sus Cris (Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo)
feita pelo viajor. A este, não passara despercebida a noção de ter chegado com
atraso, na hora da sesta, que sucede ao almoço e recupera o pessoal para as
lides da tarde.
Claro
que o Dô ia adaptando a história à capacidade de entendimento da gurizada, bem
como dando espaços para perguntas e comentários, que por vezes alteravam enredo
e fluxo do que pretendia dizer. Por sabedoria que a vida lhe ensinara, adequava
as histórias ao público como fazem os editores de literatura infantil no
aproveitamento de textos, por vezes trágicos, de autores consagrados como os
irmãos Grimm, Hans Handersen e tantos outros. Certamente os autores citados não
seriam tão conhecidos mundo afora, não fossem mascaramentos e traduções
orientados através dos tempos e com valorização crescente de imagens e cores.
Numa cadeira de balanço, cercado pelos guris, que disputavam seus joelhos, ele
criava fatos e personagens que preenchiam o imaginário de ouvintes atentos e
curiosos. Dô pontilhava linhas que iam sendo preenchidas pela imaginação e pela
memória de cada um. As interrogações eram muitas e às vezes serviam como ponto
final e instigante das histórias.
Mas voltemos ao paisano e sua fome. Estava claro para ele, que chegara após a
refeição, algo muito precioso em dia de estômago vazio. Desencilhou, foi bem
recebido, mas ninguém mencionava alguma coisa que lembrasse almoço, comida,
boia... Antes que o estancieiro voltasse para a sesta, ordenou que trouxessem
banco, bacia, jarro com água e toalha para lavar os pés cansados do
recém-chegado, que se ia apresentando ao responder perguntas enquanto mateava.
O peão caseiro ia iniciando o preparo do ritual do lava-pés, quando o paisano,
avaliada a situação e a fome, perguntou com voz entre firme e suplicante: Será
que não faz mal, lavar os pés em jejum?
*Médico e escritor