SÓ TU E EU
Tenho contabilizado horas de voo a transportar esta minha
fuselagem carnal pra lá e pra cá, desorientado, como quem carrega o filho
padecido à procura de um posto de saúde sempre lotado. Com ela, períodos atrás,
subia serras que pareciam tocar seus galhos na soleira do céu. Atravessava
pequenos rios que ainda davam vau e descia bravas encostas, sem sequer
perguntar o que estava achando da travessia.
O meu corpo, quando moço, era pleno de viço e vaidade.
Tinha fôlego de maratonista. Braços em incansável préstimo aos outros da mesma
espécie, e pernas resolutas a buscar amores desviados de sua rotina vulgar. Uma
cabeça que eu não diria lúcida, mas complacente com a turbulência da viagem, e
um tórax descarnado, muito próprio de quem viveu escondido na timidez.
O meu corpo, quando moço, tinha veias e artérias
assemelhadas ao desenho de arroios interioranos, por onde o sangue novo
desfilava todo o seu ímpeto de cavaleiro medieval.
Nos olhos vívidos, um cenário de primaveras enfloradas,
quando a vida ainda era uma paisagem de aurora, musicada pelo riso sinfônico
dos canarinhos da terra.
É claro que a gente não envelhece tão depressa assim,
entre um jantar e o café da manhã do dia seguinte. Mas tenho notado que o meu
corpo já não é mais o mesmo quando se acalma dentro de mim a cada sono que
empeça. Os constantes deslocamentos deixaram-no afônico, em dispneia, embora
resista em admitir a chegada da maresia que vai apodrecendo máquina e casco e
convés.
A propósito, a linhagem racional a qual pertenço clama
não é de hoje por uma CPI contra o Criador. O intento dos meus pares é
investigar a fundo a ação omissiva d’Ele, que nada fez para impedir que os dias
roubassem descaradamente o nosso tônus muscular, nosso colágeno, os cabelos e
até um pouco da gana de viver, a cada despedida na gare da estação.
Sinto que se aproxima o momento de a carcaça me
abandonar, exaurida e febril em razão do sofrimento tirano que lhe impus no
verdor dos anos. E na minha opaca lembrança do que serei depois, restarão
algumas imagens reveladas pela fotografia esmaecida de um tempo imemorial.
Na partilha dos haveres, não terei mais nada a
oferecer-te, oh, Deus, afora estes pedaços meus sobrados do naufrágio.
Tu me fizeste assim, uma inquieta biruta a desviar-se das
rotas da ventania, e eu sou, tão-somente, um rascunho em papel de pão do que
fui quando me era inteiro.
Ah, corpo velho de ternas lembranças, agora sei por que
andas arredio comigo, com cara de enfado e uma importuna vontade de quem pensa
em se aprontar para o salto mortal. É chegada a hora do retorno ao colo úmido
da terra, abrigo virginal e morno de todos os teus iguais de pele, ossos e
fadigadas carnes
Varando estradas, em virações sentidas, vai o meu corpo,
adulterado e melancólico. Do Corcovado ao Chiniquá, com cantos vagos, seguimos
nós. Bem no final, por entre nuvens ou arrebóis, só tu e eu...