PITACOS
DO HABEAS CORPUS
Crônica do Julgamento do Habeas Corpus Preventivo de Luís
Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal da República Federativa do
Brasil.
I: Se alguém no Brasil conseguiu acompanhar e entender,
na íntegra, o voto da Rosa Weber, receba meus cumprimentos.
II: Assisti os dois votos da Rosa: na questão preliminar
e no mérito do HC. Minha primeira impressão, é que ela esteve mais preocupada
em se auto-justificar do que em explicitar os fundamentos da sua decisão.
III - Impressões, meras impressões... ainda sobre a Rosa
de abril. Na primeira sessão do Julgamento, a impressão que me deixou, é que
ela estaria preparando o terreno para, na discussão do plenário, romper sua
postura de colegialidade exercitada nas decisões da sua turma e votar de acordo
com sua reserva de consciência jurídica, vale dizer, contra a execução da pena
no segundo grau de jurisdição. E, se essa impressão estava correta, já tinha
seu voto escrito neste sentido. Mas, por manobra nitidamente protelatória da
divergência, que, em sede do resultado do julgamento na questão preliminar, já
dava o feito por favas contadas, veio o fatiamento da sessão. E com ela uma
dilação de tempo em que muitas coisas aconteceram: a Nota Técnica dos Juízes e
Promotores; as manifestações populares de porte significativo; a repercussão na
pequena e na grande mídia, a declaração do Comandante do Exército. Acredito,
sinceramente, e sem demérito à Ministra que, na sessão de abril, ela mudou seu
voto - e o fez comodamente, como simples
confirmação da sua postura pró-colegialidade. Mas uma coisa é mudar o
voto, outra coisa é mudar o texto longo e juridicamente empolado da
justificação do seu Voto. E, foi essa, exatamente a impressão que colhi da sua
fala: uma colagem de argumentos, citações e autores que, além de destinados a
causar impressão pela mera erudição, ora apontavam numa, ora noutra direção de
raciocínio. Só consegui firmar convicção sobre o efetivo direcionamento do seu
voto nos momentos que antecederam à sua final
declaração.
Mas não se deduza dessas impressões, falta de apreço pela
postura e o voto da Rosa Weber. Confesso que me surpreendeu a sensação de que,
por detrás da couraça do seu juridiquês e da insistente, e quase impertinente,
necessidade de afirmação da sua própria coerência, revelou-se influenciável no
bom sentido deste termo, capaz de assimilar a mudança em torno e reagir
tempestivamente às suas demandas. Virtude rara naquela Corte e absolutamente
necessária para a condução a bom termo dos seus desafios na presente
conjuntura. Virtude que espero seja confirmada nas ações de constitucionalidade
vindouras.
IV: Gilmar Mendes, num dos seus atos falhos, revelou a
verdadeira faceta da crise institucional protagonizada pelo STF: o
'empoderamento' dos escalões inferiores do sistema Judiciário. No outro
(acompanhado depois pelo Dias Toffoli), relativizou a petensa cláusula pétrea
da constituição que supostamente seria a justificativa fundamental da
divergência; com efeito admitiu o cumprimento da pena antes do horizonte formal
do trânsito em julgado...
Além da já famigerada e, muitas vezes, abusiva ou
abusivamente praticada 'progressão da pena', teríamos agora, uma 'regressão do
trânsito em julgado'... obviamente, para acomodar a clientela do momento (razão
pela qual ela não poderia situar-se no marco lógico da jurisdição de segundo
grau, mas estender-se por alguns meses incluindo alguns ao STJ), ou seja, para
ultrapassar o marco temporal da próxima eleição!. E dê-lhe
jurisprudencialismo
ad hoc nessa mixórdia!
V: E o Lênio duas vezes citado por Gilmar! A união
perfeita dos contrários. Ora, pois... não podia dar outra.
VI: O Barroso roubou a cena do Gilmar. Enquanto este
qualificou-se como artilheiro de metralhadora giratória - atirando para todos
os lados, atrás, à frente, acima e abaixo, mas acertando apenas no próprio pé -
o Barroso foi sóbrio, didático e sobretudo coerente. Mas, seu pragmatismo
custou-lhe um momento de fraqueza, antecipando a possiilidade de conciliação
com a divergência, numa solução do 'trânsito em julgado' a meio caminho, não
tão perto que permitisse a prisão imediata do candidato, mas distante apenas o
suficiente para viabilizar a sua candidatura.
VII: Metade do 'voto' decano foi resposta às declarações
do Ministro da Guerra que, simples mas incisivamente e com alvo certeiro,
dirigiu-se a quem interessar possa e o chapéu queira vestir, nos seguintes
termos: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o
anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à
Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas
missões institucionais." Entendendo que servia ao STF o capuz
(entendimento que, aliás, parece constituir-se no maior consenso nacional dos
tempos que passam), o ilustre decano destilou uma catilinária anti-castrense e
pretoriana que, pelo contraste da notória e auto-reconhecida inépcia do sistema
judiciário brasileiro, e do STF em especial, em oferecer respostas à cultura da
impunidade e à escalada do crime organizado que grassa neste país, tangenciaram
os limites de uma soberba inconsútil e de uma pueril provocação.
VIII: Para a crônica da segunda parte do discurso do
Celso Mello, não vejo melhor observação que o comentário de um amigo no
primeiro PITACO: “Parecia um disco arranhado.” Com efeito, repetitivo e
estridente, a metáfora é perfeita. Especialmente pelos rrrs arrastados da sua
retórica. Foi uma profissão de fé na imutabilidade da idéia-forma - uma espécie
de platonismo vulgar - que os tempos não recepcionam e as letras pouco
socorrem. E, não obstante, a sua ortodoxia quase desmoronou, sob o influxo da
emoção que o levou, em determinado momento, a esquecer o texto e definir o
conteúdo substancial do conceito do trânsito em julgado, em contradita
flagrante de toda a sua argumentação. Pois reconheceu-o verbalmente como a
condição processual em que se esgota o conhecimento da autoria, dos fatos e das
intenções (exatamente o que autoriza a execução da pena após o esgotamento das
instâncias ordinárias). O deslize involuntário deu-se quase ao final do
discurso, mas talvez não passe na revisão do voto. Pode-se perceber que ele se
deu conta do ato falho, meio que se engasgou na própria retórica, avermelhou o
semblante mais do que o normal, tomou fôlego, interrompeu a linha do raciocínio
e engrenou para os finalmente.
IX: Vejo na mídia as especulações sobre os 'Ministros
nomeados por Lula' que votaram contra o HC; sobre os ministros de Collor e FHC
que votaram a favor; sem esquecer o ministro indicado por Temer que votou
contra. E o fato sugere um alento à desesperança deste cronista, eis que denota
uma, ainda incipiente, mas nítida tendência à superação da clivagem
político-partidária desta composição do STF que, a meu ver, predominou no
manejo da crise institucional imediatamente anterior (impeachment de Dilma).
Dois alinhamentos hipotéticos podem ter, isolada ou cumulativamente, determinado
essa diferença.
Minha análise, já firmada em outros textos, aponta uma
nova clivagem da sociedade brasileira, que já permeia as atuais e, em muitos
casos, artificiais configurações e articulações partidárias. Trata-se da
clivagem demarcada: de um lado, pela resiliência do ancién regime - na estranha
aliança de oligarcas e totalitários entincheirados nos espaços público e
privado da cultura da impunidade; de outro lado, pela aproximação difícil, mas
possível, de interesses plurais, articulados pela necessidade estratégica da
ruptura do círculo vicioso da corrupção e do crime organizado que se nutrem da
impunidade, como condição para a retomada do desenvolvimento deste país.
Mas, a observação atenta dos processos em curso no nosso
sistema político, também realça a emergência de um novo paradigma de
comportamento político, marcado pela também efetiva e não meramente demagógica
rejeição da subsunção, prevalecente no velho regime, dos valores mais
adscritivos - do profissionalismo, do mérito acadêmico, dos interesses
corporativos, das políticas globais (tipo one issue politics) - ao talante dos
mecanismos tradicionais de representação e governo. Isso que implica na
explicitação e consolidação de parâmetros éticos de comportamento político, capazes
de resgatar espaços de diálogo possível na esfera pública... prospectivamente,
círculos virtuosos de integração social que se sobreponham aos alinhamentos
horizontais, estamentais ou hegemonistas que precisamos exorcizar.
Talvez seja, apenas, a expressão ingênua que emerge da
nossa reação visceral à vergonha e ao desencanto do país que viemos a
construir, mas vislumbro essa luz no fim do túnel. Não posso afirmar que a
cisão, que determinou o resultado deste julgamento no STF reflita, isolada ou
cumulativamente, essas clivagens. Mas a capacidade de percebe- las no perfil
dos atores e na distribuição das suas forças naquele tabuleiro, me permite
acreditar, ao menos, na sua possibilidade. E, na probabilidade, sim, de que o
paradigma emergente agregue recursos de persuasão e potencial de sustentação
muito superiores aos estertores do velho regime. Algo assim como o decolar de
uma modernidade tardia, que já se submete aos testes cruciais da sua validação;
que já passou no primeiro; e, que se apresta a enfrentar os próximos com maior
força de impulsionamento.
X: Discutia-se o HC de Lula, discutia-se a possibilidade
da prisão depois do julgamento de segundo grau, ou depois do trânsito em
julgado, mas o Dias Toffoli teve o seu momento de glória disputando com o Barroso
a maior preocupação pela situação dos presos sem julgamento no sistema
prisional brasileiro e jogando confete no Lewandowski pelo seu desempenho à
frente do CNJ. Nada contra, mas convenhamos... demagogia fora do foco não
deveria transitar nos caminhos estreitos de uma Corte Suprema.
XI: Afazeres me impediram de assistir o Voto do Alexandre
Morais. Lamento. O discurso do Luiz Fux, já me fustigando o cansaço, o tive por
dentro dos conformes, na linha de argumentação do direito novo, que lançou
âncora na composição da Corte. Depois, momentos incontidos de sono breve e
reparador, me pouparam o desconforto de ouvir o Lewandowski e o Marco Aurélio,
e me recompensaram pelo despertar no canto do
cisne do ilustre decano, que
me permitiu testemunhar, recomposto, o momento épico da Toreadora, na sua
marcha que valeu a ópera de Bizet, e cujo texto, reprisando os arroubos do
Battochio, me dou a licença de citar 'en français': "Votre toast, je peux
vous le rendre / Senors, senors, car avec les soldats / Oui, les toreros
peuvent s'entendre / Pour plaisirs, pour plaisirs ils ont les."
XII: Tiro o chapéu para a senhora Carmen Lúcia. Deu a
volta por cima das suas próprias fragilidades e segurou, sem vacilar, no
comando da Corte, o enfrentamento da divergência. Se o irredentismo da gaúcha
Rosa não negar estribo à tropilha da mudança, o trem de Minas poderá mudar o
curso da Santa Aliança no comando do STF. E, com Lula
na cadeia, a Velha República terá uma chance de, em
definitivo, contar os seus dias ao sopro do Minuano.
(Texto elaborado em tópicos na minha página do facebook.
Editei e alterei a ordem numérica de alguns pitacos para dar-lhes sequência
temática nesta publicação.)