NO CAMINHO DE TAQUARI
Chovia muito na
véspera daquela Sexta-feira Santa. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos
emprestavam a São Jerônimo, Triunfo e General Câmara, de tão quietas e
desertas, a aparência de cemitérios abandonados. O barco a vapor de Mestre
Dário, o Porto Alegre, o maior da frota da Companhia de Navegação Arnt— com capacidade de transportar até 400
passageiros, dotado de camarotes, cozinha e refeitório —, enfrentara com valentia a correnteza do Rio
Jacuí. Há muito escurecera quando a embarcação, finalmente, enveredou para o
Rio Taquari, por onde alcançaria o embarcadouro da cidade a que dera o nome. No
porto, apesar do dilúvio, Nenê Agra,
meu avô, lá
estava, abrigado do torrencial aguaceiro, no volante do seu Prefect
estrategicamente estacionado o mais próximo possível do cais, à nossa espera.
Após o tormentoso desembarque, envolvido pelo
afetuoso abraço avoengo e perguntado como fora a viagem, eu jurara que jamais
faria outra jornada a bordo de balouçantes embarcações, não nas condições de
tempo como o daquela noite. Minha mãe, sempre prestimosa aos meus caprichos,
aquiescera e, para me sossegar, conjeturara que, dali para diante, as excursões
àquele pequeno e bucólico lugarejo se fariam no automóvel de meu pai. Esta
decisão, no entanto, não passaria de uma única e desgastante experiência, às
vésperas do Natal daquele mesmo ano.
A rodovia — então extremamente precária — era, em alguns trechos, de chão batido. A
poeira, erguida pelos automóveis que trafegavam no sentido contrário, cegavam a
visão de meu pai, sem considerar as pedras que eram lançadas com violência
pelos pesados caminhões deixando suas marcas na pintura da lateral do carro. Em
dias de chuva a estrada transformava-se em verdadeiro atoleiro, e não
guardavam, a qualquer tempo, o fascínio das viagens, mesmo nos barcos a motor,
que sucederam os antigos vapores impulsionados por caixas de roda.
Ao se partir de Porto Alegre, antes de
alcançar o delta do Rio Jacuí, vislumbravam-se das vigias dos camarotes as
Ilhas da Pintada, da Pólvora e das Flores para, aí sim, se iniciar a subida do
leito sinuoso dos rios Jacuí e Taquari, margeado por densas matas nativas que
presenteavam com deslumbrantes cenários a cada meandro. Ao longe e em dias de
intensa claridade, a uma distância de quatro quilômetros do porto da cidade, quando o vapor iniciava uma longa e suave
curva para a esquerda, apoiado nas balaustradas, eu avistava por entre a copa
das árvores do bosque que ainda hoje circunda a pequena povoação, primeiro, o
campanário da Igreja Matriz São José de Taquari, na elevação da Rua Sete de
Setembro; aos poucos, os altos muros e os telhados já sem cor definida dos
antigos sobrados no estilo açoriano. Mais próximo, eu distinguia, tal
sentinela, a possante águia esculpida em granito na cumeeira do solar de meu
avô. A ave parecia premonizar a chegada de seus hóspedes.
Na casa avoenga
vivenciavam-se verdadeiros festivais de aromas e sabores indescritíveis que se
perpetuariam na minha memória: a essência do óleo de peroba nos móveis antigos,
o perfume dos jogos de cama lavados e caprichosamente engomados, os eflúvios da
goiabada, ou do doce de abóbora recém-feitos em tachos de cobre pela avó, que
se evolavam por todos os recintos do casarão. O avô não cabia em si de
contentamento com a visita do primeiro neto. Prometia, para o dia seguinte, uma
ida ao orquidário para exibir os novos espécimes de sua coleção e as medalhas
mais recentes, fruto dos lauréis nas exposições.
Na companhia de meu avô eu fruía, naquela
hora preguiçosa de pós-almoço, do suave e inusitado prazer em aspirar a
adocicada fragrância da fumaça do crioulo e ver o fumo caprichosamente
desbastado e enrolado com habilidade na folha de palha. Eu era tomado por
assomos de risos ante os “causos” então narrados com fina ironia — traço marcante do ancestral — das gafes e trapalhices de alguns confrades
da aldeia. Meu avô inventava, mesmo ante minha ingênua curiosidade, anedotas
contando as sandices de antigo administrador da cidade.
Nos feriados prolongados como aquele, a casa,
após o almoço, era invadida pelo alarido dos demais netos, a despeito dos
clementes pedidos de minha avó para que guardássemos silêncio, afinal a sesta
era sagrada para o velho orquidófilo e exímio inventor de histórias. Era,
então, permitida a incursão do alegre bando à Lagoa Harmênia.