QUANDO OS CACHORROS FALAM.
Franklin Cunha
Médico
Membro da Academia Rio-Grandense de Letras
No “Colóquio de los Perros“
uma das Novela Exemplares de Cervantes, lê-se a autobiografia do cachorro
Berganza, que deitado à porta de um hospital de loucos, teve a
oportunidade de observar a desgraça do matemático incapaz de descobrir a
quadratura do círculo, a tristeza do poeta cujos sonetos ninguém editava e
o desespero do político que não tinha conseguido explicar ao Rei o
engenhoso projeto financeiro para dominar a inflação e evitar a
bancarrota da Espanha.
Na
porta do hospital logo se instalou outro cão, Cipion que entre eles
conversavam e contavam suas aventuras nas ruas. Um alferes, hóspede do mesmo
hospital, passou a ouvir as conversas dos dois cães e se admirava que eles eram
mais sábios do que ele. Ao contar para um enfermeiro o que ouvira, este se
negava a acreditar que cães falassem e muito menos dizer verdades tão
desagradáveis sobre o reino da Espanha.
A
sabedoria de Cervantes e seu amor pelos cães é revelada nessa história, obra de
elogios e afetos a uma criatura de honestidade inquebrantável, olhos
melancólicos, companheiro desde tempos imemoriais, cujos ossos já eram
encontrados ao lado de ossos humanos quando o homem caminhava à procura de
alimentos e seus companheiros de quatro patas os seguiam para comer o que
sobrava.
Outras
histórias caninas já se contam desde antes de Homero, cujo cão Argos foi a única
criatura que reconheceu Ulisses ao voltar para casa depois de vinte anos
de ausência.
Uma das mais recentes no gênero da literatura fantástica é
As Cidades Mortas “( na versão, portuguesa, Colecção Argonauta, edição
Livros do Brasil, Lisboa) e “ Cidade “ (na edição brasileira), cujo
autor é Cliford Simak, escritor norte-americano, um dos maiores clássicos
da literatura de ficção científica de todos os tempos.
No livro, Simak conta a história humana a partir do ponto de
vista dos representantes da família Webster e de um robô. Foi um antepassado
remoto dos Webster, quem primeiro ensinou um cão a falar. A partir daí,
milênios vão se passando e Simak demonstra toda sua habilidade ao criar uma
obra fantástica. Com grandes doses de imaginação o autor mostra como aos
poucos, os cães – muito mais ponderados e pacifistas que o homem – se tornam a
espécie dominante na Terra. Nele, seres caninos questionam se a espécie humana
teria realmente existido e dele se tira uma lição moral, ética e uma coerente
visão do futuro. E fica-se com a pergunta final: Será que o destrutivo ser
humano merece continuar no comando da Terra com todas as atrocidades que não se
cansa de cometer? Ou será que nosso planeta estaria em melhores mãos, se guiado
por criaturas que dão mais valor ao amor e à amizade, como os cães”? Há uma outra
deliciosa história de cães de autoria do tão criativamente divertido como
socialmente “corrosivo “. É de Pitigrilli ( Dino Segre, 1893-1975).
Um dia, um cão de fina estirpe foge de casa e se encontra , à
noite, debaixo de uma ponte com um vira-lata magro e sarnento. Conversam e o
cão de bela e perfumada pelugem conta sua vida na casa burguesa onde
nasceu e foi criado.
- Agora não estou mais naquela casa. Consegui fugir.
- Que queres? Aquela casa não me agradava mais. Os seus hóspedes
eram demasiados ricos, demasiado bons, queriam-me demasiado bem. Até me
enfastiavam e me irritavam com o seu afeto sem medidas. Enfim,
davam-me tudo o que eu queria. E o que não queria.
- Não sabes quanto se está mal na abastança.
— Deixavam-te lamber os pratos? pergunta o vira-lata.
— Isso não, diziam eles, porque é anti-higiênico deixar que os
cães comam nos pratos do dono. Até contavam uma história de um cão que por ter
lambido o prato onde comera uma senhorita de dezoito anos de família
distinta, pegou a sífilis.
Assim se contam três amenas histórias de cães quase humanos,
nossos fieis amigos desde imemoráveis épocas da história humana.
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