segunda-feira, 11 de setembro de 2017

MEU AMIGO MARSHALL, INTELECTUAL DOS BONS, NÃO DEIXA PEDRA SOBRE PEDRA.


Francisco Marshall é historiador e arqueólogo. Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP, fez estágio pós-doutoral na Princeton University (EUA) e na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha). Leciona na UFRGS. É fundador e curador cultural do StudioClio - Instituto de Arte & Humanismo, em Porto Alegre. Publicou Édipo Tirano, a tragédia do saber (EdUFRGS e EdUnB, 2000), que venceu o Prêmio Açorianos 2001.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – É notória a crise econômica pela qual passa o Rio Grande do Sul. Para além dela, que outras crises o estado vive e por quê?
Francisco Marshall – Sete pontos:
1) Narcísica, ao modo lacaniano: pensa ser o que não é, é o que não pensa ser.
2) Política: degradação da democracia, vazio de articulação entre sociedade, partidos e lideranças, ausência de debate de alto nível para planejamento e determinação de metas, derrota da alta burocracia de Estado e do pensamento acadêmico pela insensatez de governantes despreparados.
3) Econômica e fiscal: com desindustrialização e sem projeto de desenvolvimento, incapaz de agregar valor à produção primária, incapaz de combinar pesquisa em C&T com desenvolvimento social e econômico, capacho derrotado na guerra fiscal (com a União e com os demais estados), o Rio Grande do Sul cresce como rabo de cavalo.
4) Social: persistência e mesmo expansão das favelas em cidades médias e grandes, ausência de recursos e projetos públicos para os fundamentos da cidadania (ciência, cultura, educação, espaços públicos, saúde e segurança), desmotivação da juventude.
5) Educacional: escolas públicas e professorado historicamente depreciados.
6) Moral: safados atacam princípios virtuosos movidos por fundamentalismo ideológico e ganância, com aplauso de imprensa lacaia.
7) Histórica: começou faz tempo, não dá sinais de que será superada.

IHU On-Line – O senso comum diz que o povo gaúcho é educado, culto e politizado. Onde está o acerto ou o exagero dessa afirmação? Por quê?
Francisco Marshall – Não temos homogeneidade suficiente para constituir um povo; somos uma equação desequilibrada de segmentos sociais discordantes. Há delicadeza e grossura, cultura e ignorância, lucidez e demência políticas, mas creio que predomina a inconsistência cultural, sobretudo nas classes afluentes. O trânsito é bom espelho da grossura hegemônica: não se respeita pedestre, poucos cedem espaço, não há alinhamento dos carros para facilitar o fluxo das motocicletas, autoridades preferem caçar multas fáceis a educar motoristas, há muitos acidentes e mortes, as pessoas abrem a janela do carro e jogam lixo pela janela, combate-se plano cicloviário como se fora ideia de esquerdista; isto é espelho de uma sociedade incivilizada e metáfora do que ocorre no restante da sociedade gaúcha, porto-alegrense em particular. Quanto ao politizado, fica por conta de Getúlio Vargas e Leonel Brizola , bem como das experiências do Orçamento Participativo e seu irmão cultural, o Fórum Social Mundial ; tudo no passado, sucumbido, arquivado. O eleitor gaúcho hoje elege dementes e se aliena com cara de penico. Se não está morta, a cultura política gaúcha hiberna pesadamente.

IHU On-Line – O que há de arcaico e de contemporâneo no estado?
Francisco Marshall – A estrutura produtiva básica é da era colonial (âncora na produção primária sem valor agregado – soja in natura); tal como no Brasil, as lideranças empresariais (agronegócio, comércio, indústria e serviços) não assumem seu potencial burguês e sufocam a transformação social possível pelo trabalho, o que bloqueia o futuro e produz tensão social. Parte desse atraso se reflete em lideranças de péssima qualidade e de ideologias atrasadas e improdutivas. Mais que arcaico (o princípio que pode se modernizar), este lastro é de índole retrógrada. Por incrível que pareça, temos contemporaneidade em alguns aspectos (não muitos): artes de excelente qualidade (especialmente artes visuais, cinema, literatura e música), ciência e cientistas de bom nível em vários campi, festivais culturais muito interessantes (Fronteiras do pensamento, PoA em Cena, Virada sustentável, Noite dos Museus, PoA Jazz Festival, FantasPoa Literária, entre outros), jovens com capacidade de inovação e, sobretudo, um resíduo de gente consciente, capaz de ao menos perceber e denunciar o rumo errado de muitas decisões – resistência iluminista em era de catástrofes.

IHU On-Line – O atual prefeito de Porto Alegre defende a privatização do Mercado Público. O projeto de revitalização do Cais Mauá, preparado em gestões anteriores, prevê a construção de shopping center na orla do Guaíba. O que esses fatos dizem sobre a visão de futuro para a cidade por parte das administrações?
Francisco Marshall – O principal problema de todas as democracias é a demagogia. Os eleitores votam iludidos em candidatos inconsistentes, enganados por imagens manipuladas. Estes candidatos costumam não declarar ou detalhar programa, mas uma vez eleitos aplicam pacotes ideológicos automatizados, como o caso atual do neoliberalismo de sarjeta, hoje epidêmico, que hostiliza a palavra “público” e acalenta diversos compromissos com o que chama de “privado”: os interesses de grandes corporações e mamatas para parceiros empresariais. Ademais, estes gestores (como, e.g., [Nelson] Marchezan Jr. e [José Ivo] Sartori ) simplesmente não sabem governar, não têm capacidade de estudo, diálogo, inovação, planejamento, não conseguem formar equipes de qualidade e liderá-las com inteligência e serenidade, não possuem qualquer virtude acadêmica ou conhecimento contemporâneo, então sua sujeição ideológica e seus erros, próximos da demência, tornam-se ainda mais patéticos e onerosos para a população. Para quem não sabe governar, a ideologia de pacote pronto preconiza, e a mídia lacaia ratifica: privatiza!

Nos dois casos apontados, há uma erosão perversa da esfera pública e um solapamento da inteligência contemporânea e de potenciais virtuosos. Mercado Público: o jovem prefeito tomou como alvo a palavra (público) e antes de diagnosticar qualquer problema e de examinar como solucioná-lo, na condição de gestor, aperta um botão; simplório, ineficiente, possivelmente interesseiro (alguém lucrará, e isso pode bonificar o demagogo profissional, na forma de apoios e verbas). Cais do Porto: trata-se de um projeto horrendo, que quer shopping center em área vocacionada a parque, e baseia-se em modelo de verticalização e economia concentrada, em lugar de horizontalização e economia criativa e cooperativa, recomendadas para revitalizações urbanísticas. Repleto de vícios e mesmo delitos, o projeto é protegido por agentes muito suspeitos na administração municipal (Executivo e Legislativo) e estadual, e conta com certa leniência e morosidade judiciária, aparentemente refém do medo de onerar o poder público com eventual indenização rescisória. Enquanto isso, perdemos o tempo precioso para ali desenvolver um projeto realmente bom, bonito, eficiente e contemporâneo, o qual nem requer recursos vultosos, apenas inteligência, atualidade e espírito público. Logo, enquanto a opinião pública não perceber os riscos de apoiar este tipo de políticos (demagogos inconsistentes e nocivos) e o alto preço de sua alienação social e política, estaremos expostos a muita batalha para evitar catástrofes, que podem ocorrer.

IHU On-Line – Não é curioso que os integrantes do movimento tradicionalista, de maneira geral, valorizem como atributo dos gaúchos traços rústicos, chulos e grosseiros?
Francisco Marshall – Os regionalistas defendem também valores positivos de autenticidade, lealdade e hospitalidade, gostam de poesia (mesmo que de estilo antigo), valorizam a música e o folclore, têm uma certa noção de identidade e enquanto tomam mate ou assam ovelhas estão deixando de fazer outras bobagens; então, não é perda total. Paixão Côrtes foi um folclorista à altura de Câmara Cascudo , e a cultura regionalista, com seus festivais e em seu circuito social, conseguiu gestar artistas valiosos, como Borghettinho , Luiz Carlos Borges , Mário Barbará , sem falar na família Fagundes , cheia de talentos, e outros bons valores. Creio que o maior volume de grossura é mesmo do arrogante urbano, um íncola sem cosmopolitismo, indelicado, conservador e tolo. O médico racista que lidera movimento de opinião contra as cotas sociais, por exemplo, revela uma grossura muito mais grave, aquela de quem tem acesso a recursos culturais e os desdenha em favor de interesses mesquinhos; este tipo é de uma rusticidade chula e grosseira deplorável, muito pior que a de qualquer devoto de galpão-oratório.

IHU On-Line – O senhor é curador de uma instituição inserida na vida cultural do estado. Neste campo, as produções costumam receber apoio de verbas públicas ou patrocínios privados. Qual a situação do Rio Grande do Sul no que tange aos incentivos culturais?
Francisco Marshall – O StudioClio não recebe nem verba pública nem patrocínio privado; é uma experiência visando à sustentação unicamente pela produção e consumo cultural. Como o gaúcho tem pouco hábito de consumo cultural e gosta de comprar em camelô (mesmo os ricos), a situação lá é dificílima. A LIC-RS [Lei de Incentivo à Cultura] passou por revisão recentemente, que a piorou um tanto, pois os recursos autorizados para grandes projetos são insuficientes e os para projetos menores, inexistentes, aquém da capacidade de captação e realização. No Conselho Estadual de Cultura, que emite pareceres da LIC, nota-se uma assombrosa falta de preparo técnico, pelo predomínio de indicações políticas na sua composição. Atualmente (2017), ninguém sabe onde anda ou o que faz a gestão estadual, pois a decadência é vertiginosa, sobretudo dos museus e projetos de desenvolvimento cultural. O fomento via Pronac-mecenato [Programa Nacional de Apoio à Cultura] no MinC [Ministério da Cultura] é igualmente crítico, ainda mais neste momento recessivo, em que as empresas não declaram lucro e não têm, portanto, de onde tirar recursos fiscais habilitados.

Infelizmente a meta de Sérgio Paulo Rouanet não se realizou – o desenvolvimento de uma cultura de mecenato. Atrelaram-se projetos culturais a finalidades de marketing, e nisso predominou a preferência por fenômenos de massa com pouca ou nenhuma densidade cultural em detrimento do poder de inovação dos arte-criadores, do estímulo ao florescimento pela arte e pela cultura e do desenvolvimento das relações entre arte e educação. O regime de editais temáticos e do fortalecimento das instituições realizadoras (institutos, museus, bibliotecas, centros culturais) permite contornarem-se os vícios dos programas de incentivos fiscais, mas ainda predomina a grave escassez de recursos.

No Rio Grande do Sul, ademais, vivemos o escabroso quadro de um ataque do governo estadual (Sartori) a instituições de arte, ciência, cultura e conhecimento técnico aplicado (as fundações ameaçadas de extinção), em um programa demente que atinge bases seguras do desenvolvimento socioeconômico regional; uma insensatez monstruosa. O Brasil e o Rio Grande do Sul seguem à espera de um novo modelo de fomento à cultura, mais eficiente e favorável ao desenvolvimento dos valores necessários a todas as civilizações – arte e cultura.

IHU On-Line – No cenário cultural nacional, prevalecem produções do Rio de Janeiro e de São Paulo. Há também expressões importantes de estados nordestinos, como Pernambuco. Por outro lado, artistas que trabalham no Rio Grande do Sul costumam apontar que suas obras têm pouca aceitação nacional. Isso procede? Deve-se ao quê?
Francisco Marshall – O modernismo brasileiro, patrono de nossas noções e instituições de patrimônio, orientou sua bússola para o patrimônio mineiro e para o Nordeste, efetivamente ricos em arte e folclore. Mário de Andrade e Villa-Lobos são avatares desta tendência, perpetuada desde então. O Rio Grande do Sul era sentido mais como concorrência, por possuir sua própria cultura (e economia), do que como assunto meritório; alinhava-se ao Pampa e às culturas castelhanas, longe de um mundo de praias, coqueiros, coloridos da flora tropical, lastros de lusitanidade castiça e africanidades pulsantes. Nos anos 30, ademais, especialmente depois de 1932, cresceu a hostilidade política de São Paulo contra o Rio Grande do Sul. Isto ajudou a construir a miopia incapaz de ver Simões Lopes Neto em seu esquadro real, alinhado a James Joyce e a Guimarães Rosa , e uma certa dificuldade de assimilar expoentes como Erico Verissimo e Josué Guimarães (entre outros) em sua verdadeira dimensão, máxima. Na música, porém, creio que temos expressões mais bem acolhidas, em um arco que vai de Radamés Gnattali a Yamandu Costa .

A última derrota cultural do Rio Grande do Sul foi nos anos 80 e início dos 90, quando uma geração muito talentosa foi colocar-se no Rio de Janeiro, mas explodia, na época, um produto em compota, o assim chamado rock nacional, que concentrou e quase monopolizou mídia e produção. Ultimamente, o Brasil inteiro sucumbe a uma pavorosa leva de mau gosto musical, que contamina também o Rio Grande do Sul. O ônus dessas relações desequilibradas é que artistas locais têm pouco acesso à rica economia concentrada no Sudeste e ficam condenados a atuar em um brejo com pouco vigor econômico e cultural, insuficiente para sustentar a produção efetiva dos artistas e a renovação necessária da cultura.

IHU On-Line – Há poucas bibliotecas públicas no estado, não existe uma política oficial para compra de livros e as escolas públicas estão em situação precária, justamente em um estado que desde a Primeira República era referência em educação. O que dizer deste cenário?
Francisco Marshall – Pior: um projeto da prefeitura de Porto Alegre, em parceria com a Câmara Rio-grandense do Livro, o Adote um escritor, que vitaliza ricamente literatura e produção editorial nas escolas da cidade, foi recentemente (gestão Marchezan Jr.) desfigurado, rumo ao colapso. A falta de bibliotecas é homóloga à falta de teatros, auditórios, cineclubes e centros culturais; na periferia das cidades, onde mais se necessita destes recursos, o vazio é total e trágico. As autoridades não percebem que as emanações culturais são a fonte mais virtuosa para o desenvolvimento: potencializam destinos, fomentam a autoria e a construção de símbolos, identidades e sujeitos, distribuem pensamentos e sensibilidades elevadas, mobilizam as comunidades em harmonia, ocupam o tempo com qualidade e, como percebeu Aristóteles , ajudam a cidade a purgar seus males (catarse). Como efeito complementar, mas não menos relevante, a cultura incide rápida e vigorosamente sobre os índices de violência, hoje críticos. O livro e as bibliotecas são parte deste processo; mesmo que o livro tenha uma dimensão comercial, é um bem cultural precioso, que necessita fomento. A cultura é como a democracia: sempre um bebê cheio de possibilidades, mas necessitando de alento e cuidados vários. O meu sonho cidadão é que houvesse um StudioClio público em cada distrito, bem como mais espaços culturais, em formatos variados, junto aos parques, na paisagem urbana, para o florescimento de qualidades com as quais um mundo melhor efetivamente se realiza.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Francisco Marshall –A humanidade hoje vive diversos dilemas graves; mais graves do que os pretéritos, pois todas as forças se desenvolveram nestes 5.000 anos como vetores potentes, e hoje uns cooperam, muitos conspiram coligados, quase todos colidem. A agressividade contra o ambiente degradou o planeta e ameaça a todos. A polarização social cresceu, e o desenvolvimento conquistado segue restrito a uma parcela pequena da população. Bens vitais e simbólicos são preciosos e escassos. Retóricas e imagens perversas ocultam e ameaçam. Talvez o mais grave conflito hoje seja entre capital e humanismo. O capital alimenta-se do humano para concentrar-se, tornar-se cada vez maior – e mais devastador. Seu limite e sua única chance de têmpera é o humanismo. Não se trata apenas de embate entre direita e esquerda, mas de algo muito mais denso e grave. Olhamos para trás e vemos um patrimônio de inteligência que nos alimenta. É disso que vive o humanismo, e de onde provêm forças e possibilidades que nos resgatam da adversidade e nos nutrem para criar presente e futuros melhores para nós e para todos. Que este humanismo, que inspira a esta bela edição e a quem deseja viver em harmonia, seja também e sempre a razão para nos posicionarmos no mundo e cooperarmos. Eis o bem maior, possui graça inata e dá sentido a tudo o que fazemos, humanistas.