Janelas e vidas quebradas
Por Tarso Genro
Por razões diversas, que não cabem ser analisadas neste artigo, a criminalidade e a violência têm aumentado, significativamente, em todas as partes do mundo, com raras exceções. É só aumento da sensação de insegurança, causada pela facilidade de transitar informações? Ou, realmente, a humanidade, nos seus lugares de maior concentração de pessoas – como nas grandes metrópoles – está mais violenta? Ou são as ocupações militares, os refugiados das guerras, ou os problemas sociais, que realmente aumentam o crime e a violência?
Temos teses acadêmicas, artigos, livros de “especialistas”, para todos os gostos, mas os maiores e menores surtos de violência ou criminalidade – em cada época- têm as suas especificidades, causas próximas e remotas, orbitando sempre em torno da cultura dominante na sociedade, dos problemas sociais que a sociedade enfrenta, das sociopatias mais comuns em cada época, das doenças mentais, que explodem em violência contra o semelhante.
Nem em países como o nosso, todavia, os problemas sociais podem ser responsabilizados, exclusivamente, pelo aumento da criminalidade. É mais apropriado dizer que não são os problemas sociais, que são dominantes como fatores de criminalidade, mas sim são dominantes – como fatores de aumento ou diminuição do crime – as formas como os estados tratam os problemas sociais e organizam a repressão ao crime.
Às vezes, uma política de combate ao crime numa determinada região de uma cidade ou de um estado com índices elevados de violência, é medida de forma profundamente equivocada, porque logo após o início da implementação de um determinado programa, aparentemente os índices naquela região ou cidade, aumentam. Na verdade, visto mais de perto o fenômeno, o que aumentou foi o registro dos crimes pelas vítimas, que antes não os denunciavam, porque não tinham a quem se reportar ou não tinham confiança nas autoridades de Polícia, que até então autuavam na área.
Outra conclusão enganosa é que os regimes violentos e fora de qualquer legalidade democrática, sejam eles de que coloração forem, diminuem a criminalidade. O que ocorre, nestes casos, independentemente das boas ou más intenções destes regimes e das sua finalidades “sociais”, é que o Estado monopoliza a ação criminosa e internaliza os delitos -assassinatos, torturas, roubos, expropriações administrativas, violência sexual- como ocorreu no nazismo, no stalinismo e na ditadura argentina, para citar os regimes mais caracteristicamente violentos que ocorreram no mundo, cujos crimes puderam ser razoavelmente quantificados. A “estatização” do crime intimida a sociedade e reduz o seu potencial criminógeno, pois todo ele foi monopolizado pelo Estado.
A teoria das janelas quebradas (“Broken Windows Theory”) – formulada pelos criminalistas americanos James Wilson e Gorge Kelling – inspirou centenas de textos acadêmicos e não acadêmicos e deles derivaram, com extrema fertilidade, muitas proposições na área de segurança pública. A proposta experimental dos criminalistas foi a seguinte: deixar um carro, sem vigilância, com janelas quebradas e, parcialmente depredado, numa região pobre, cuja destruição foi rapidamente completada pelos moradores do local; deixar um carro, numa zona nobre de classe média, sem nenhuma danificação, que permaneceu assim por duas semanas. Logo após, um pesquisador iniciou sua destruição parcial, que foi rapidamente seguida por ataques de vândalos, da região “privilegiada”.
A experiência não pode ser desconsiderada, mas podemos dizer – a partir da experiência de Porto Alegre – creio que comum a todos os governos municipais, depois do Governo Olívio Dutra, que as escolas que foram produto de escolhas da comunidade, através do Orçamento Participativo, tiveram baixíssimo índice de depredação, comparativamente às demais que foram implantadas por decisões meramente burocrático-administrativas. Não sei se isso ainda permanece, mas posso dizer, sem margem de erro, que até onde acompanhei estes processos decisórios, isso realmente ocorreu.
A experiência das “janelas quebradas” mostrou que a depreciação dos bens e a decadência da paisagem urbana -em espaços públicos ou privados, em qualquer classe ou lugar- estimulam os delitos. A experiência do Orçamento Participativo demonstra que, quando a comunidade interage com seus governos e faz suas próprias escolhas, ela educa-se a si mesmo e educa os Governos. Quebra não só as barreiras burocráticas que separam o Estado do cidadão comum, como se torna, ela mesma, gestora das políticas públicas que lhe são fundamentais. E daí protege os seus bens.
As pessoas dependem de condições mínimas para transitar em paz pelas cidades -condições mínimas de segurança- para usufruírem os espaços públicos. Para visitarem as suas famílias, irem aos Hospitais e Postos de Saúde, frequentarem as Escolas, escolherem os restaurantes e cinemas. Esta pré-condição de segurança precede todas as demais: por isso, os cortes de gastos, nesta área, comprometem a vida por inteiro das pessoas e deveriam ser os últimos, quando necessário, a serem feitos.
O corte de gastos na segurança fulmina rapidamente o direito de ir e vir e a própria possibilidade de acesso aos bens e serviços públicos. Esta falta de “dosimetria”, para os cortes, é uma questão local e mundial. Nos países do “primeiro mundo” que fazem os “ajustes”, só não são cortados os créditos de guerra, pois são recursos -certo ou errado- considerados como integrantes de uma política de segurança mundial.
Costumo dizer -e insisto- que os resultados de uma política de segurança realmente séria só são visíveis no médio e longo prazo. Passam pela combinação ousada de políticas investigativas e repressivas, seletivas e qualificadas, com políticas preventivas. Estas, particularmente voltadas para as mulheres e para os jovens, começam por programas de formação profissional, programas culturais e esportivos, pelo Policiamento Comunitário, pela instalação de territórios especiais de controle (os Territórios de Paz), pelas Patrulhas “Maria da Penha“, antecedidos pela preparação das Polícias, para estas novas tarefas, vinculadas a outra visão de segurança pública, na qual o Sistema de Polícia é parte fundamental, mas não exclusiva.
A melhoria das condições de trabalho e remuneração de toda a Polícia e, especialmente, dos que trabalharão nestes novos “fronts” – de forma articulada com as Prefeituras – é condição indispensável para este tipo de política de segurança. As Prefeituras são parceiras indispensáveis de qualquer política inovadora, na área, porque tem mais proximidade com a comunidade, que será integrada nos projetos preventivos, e tem mais capacidade de operacionalizar as ações preventivas no território da cidade. O Governo Federal deveria ser o grande indutor destas “inovações”, que são aplicadas em várias partes do mundo com razoável grau de sucesso.
É preciso, também, deixar de lado a concepção de “guerra às drogas”, que promove ocupações violentas nos territórios mais inseguros, porque estas operações militares, na verdade jogam a comunidade nos braços dos traficantes, que controlam a região, que passam a ser seus falsos protetores em relação à violência policial. O ataque às fontes de produção e distribuição da droga -fora das comunidades onde impera a violência- é que criam as condições para, gradativamente, o Estado acabar com o seu mercado clandestino e os respectivos agentes daquele mercado, enraizados nestas regiões.
Numa ano de eleição municipal este é um debate crucial, pois embora a Segurança Pública seja de responsabilidade de um ente abstrato chamado Estado, os municípios -território concreto onde a insegurança se expressa- é onde as janelas e as vidas se quebram. Mesmo que os Estados não tenham um projeto de médio e longo prazo, eles têm que – no mínimo – tomarem providências imediatas para que as pessoas transitem na cidade com um mínimo de segurança, para acessar aos serviços públicos e aos seus espaços de trabalho. É um direito, não uma concessão.