sábado, 13 de fevereiro de 2021

BELO ARTIGO DE FRANKLIN CUNHA

 Q E P D

Faleceu Ivan Izquierdo.  Amigo  de muitos anos, partilhávamos alguns interesses: os labirintos da memória,  linguística, política de esquerda,( o “apellido “ dele já indicava como pensava em política), Borges,  tangos “arrabaleros” entre outros temas.

Trocávamos livros  e o que ele mais gostou não foi um com temas científicos, mas um que comprei num sebo de BA  intitulado:  EL LUNFARDO Y EL TANGO EM LA MEDICINA “ de autoria do médico  Luis Alposta e com prefácio de Luis Federico Leloir, prêmio Nobel de Química em 1970.

Alposta abre o livro assim:

“Alma Fuerte y Carriego en un estante,

un anónimo cráneo que bosteza,

Vários puchos, mis sueños de estudiante

Y un tomo de Testut sobre la mesa”.

(Testut é um tratado de anatomia, traduzido do francês)

Nas décadas de 10, 20 , 30 e 40 , os estudantes de medicina costumavam realizar dois bailes anuais: um para os que entravam na faculdade e outro para os que dela se despediam.

Q E P D era uma lápide vista nos túmulos da Recoleta  e queria dizer “Que Es Para Despedirse”” e o título dos bailes era também Q E P D e traduzido por : Que Es Para Divertirse “. E foi também o título de um tango.

E de muitos desses bailes se originavam composições tangueiras, todas com títulos ligados à profissão médica.

Cito alguns :

Muy de Vacuna de Serafin Santiago

La Morgue de Norberto Robertazzi

Restablecido de Antonio Catuara

Le Pica? Lugolina do Dr. Eduardo França

Reumil . Tango Inyetabble  de José Clemente

Púrguese de Vicente de Cicco

Sal Inglesa de autor não identificado.

Bicarbonato de A. Battisti

Bicloruro de Francisco Demarco

Sulfato de Soda de Maria Luisa Tirigail

Sin Drenaje de A. C. Scatasso

Trepanación de Alberto Cianclarulo

EL Serrucho de Luis Teisseire

Cloroformio de Alberto Paredes

La Fratura de Raimundo Petillo

El Galeno de Orfeo Giudice

El Oculista de Naum Kotliroff

Caso Grave de Felisa Luengo

El Bacilo de Alberico Spatola

La Gripe de Antonio Viergol

Patologico de Alberto Etcheverry

Praticante de Antonio De Bassi

Histerico  de Miguel Tornquist

El Termometro de Jose Martinez

La Muela Careada de Vicente Greco

El Anatomista de Vicente Greco

Enfim, no total, foram 135 títulos de tangos e milongas que resultaram dos famosos bailes de estudantes  de medicina.

Naquelas épocas era frequente os músicos , pobres, a maioria deles ,  dedicar tangos aos médicos  como agradecimento aos tratamentos que recebiam. Em uma oportunidade o compositor e regente de orquestra típica Augusto P.Berto visitou o famoso ciruurgião Dr.Finochieto para pedir-lhe  o favor de atender a um de seus músicos. O hábil cirurgião lhe respondeu o seguinte:

Sim, mas com uma condição.

Qual?

Que seu amigo não me dedique nenhum tango.

Henrique Finochietto era o cirurgião da moda, sua clínica era frequentada pela alta sociedade argentina ( foi médico de Evita Peron) e, por sua vez, o tango, era considerado “El reptil de los lupanares “ como dizia o poeta Leopoldo Lugones. Portanto, socialmente, não ficava  bem ver seu nome citado num tango de um pobre músico “arrabalero”.

Dessas e de outras histórias tangueiras ou políticas , Ivan e eu conversávamos nas reuniões que fizemos em minha casa e em outros encontros eventuais – científicos ou não . Uma dessas histórias, foi sobre política argentina, da ditadura, de torturas, desparecimento de pessoas  e assassinatos.

Percebendo que Ivan era um fiel e habilidoso  contador de histórias, o convidei para escrever uma delas  para um livro que eu e os colegas Blau Souza, José Eduardo Degrazia e Fernado Neubarth resolvemos organizar e publicar, escritas por médicos. Título da série( sim, foram sete edições com autores  e temas diversos): “ Médicos (Pr)Escrevem.  Ivan, pronta e gentilmente, nos brindou com uma emocionante história de um estudante, preso e torturado durante a ditadura argentina, tema que ele conhecia bem porque  lá viveu durante algum tempo na barbárie que tomou conta do vizinho país sob a ditadura militar.

Essas são algumas de minhas recordações de meu amigo que certamente nos fará muita falta .

Q E P D, querido Ivan Izquierdo.