quarta-feira, 28 de junho de 2023

A LUTA DAS MULHERES

 Revendo nuns alfarrábios que já se mostram vetustos, eu mesmo me surpreendi. Fui olhar umas peças de processos Judiciais. Vejamos essa peça de um processo. Tratava-se de uma “investigação de paternidade e pensão alimentícia". Note-se bem que na época não havia o prodígio que temos hoje, ou seja em 1981 não havia computadores pessoais e todas essas ferramentas que temos hoje. 

O linguajar tosco me impede de transcrever na íntegra os termos. Todavia vamos pinçar partes mínimas para se ver o absurdo que havia naquele tempo: 

“O réu, na referida noite e data, limitou-se a se gozar com a autora, reservando seu “semem” para uma outra menina que, pela primeira vez, surgia na roda. O réu e mais dois companheiros estiveram em “suruba” com a autora.”

Em outro relatório da Polícia Civil, em 1986, há termos absurdos:

“A declarante, apesar de ser do sexo feminino, desde que se conhece por gente, tem tendências pelo sexo masculino, informando que desde menina sempre quis ser homem.” 

Incríveis outras peças tocando nesses assuntos como se fossem crimes.

Para se ver como houve injustiças para muitas mulheres.


No início dos anos setenta as mulheres já estavam em toda parte. Nas faculdades de medicina, de odonto, engenharia e tantas mais. Na minha turma do Direito da UFRGS havia um terço de gurias, todas muito estudiosas. Em várias áreas se destacavam: nas rádios, nas TVs, nos jornais, na advocacia, no magistério superior, na política. Mas não tinham acesso à magistratura estadual aqui no RGS.

Era assim: o Tribunal de Justiça abria o edital para o concurso a juiz de direito, do qual constavam vários ítens como idade, escolaridade, bons antecedentes, mas não havia nenhuma restrição quanto ao gênero. Esgotado o prazo para as inscrições,  a lista era submetida ao exame da comissão de concursos, que indeferia, sumariamente, a inscrição das mulheres. No concurso seguinte ao meu, várias mulheres se inscreveram novamente e o assunto foi levado por mais uma vez ao órgão especial do TJRS.  Acontece que o colegiado já tinha uma composição de desembargadores mais jovens. Foi fundamental, a meu ver, o fato de uma filha do desembargador César Dias  haver se inscrito. Seu nome: Maria Berenice Dias. Houve uma grande discussão e a votação mudou, abrindo as portas para as mulheres. 


Assim como a pioneira Maria Berenice as mulheres começaram a se destacar, caindo por terra todas aquelas falácias que eram motivo para os receios já narrados.

Em breve haverá vagas no STF. Será imperioso que sejam preenchidas por mais mulheres.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

DISCURSO DE RAFAEL KOERIG GESSINGER

 

DISCURSO POR OCASIÃO DO CAFÉ GERMÂNICO CULTURAL

ALUSIVO AOS 400 DIAS PARA O BICENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ

PROMOVIDO PELO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ DO SUL E PELA COMISSÃO OFICIAL DO BICENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ

SANTA CRUZ DO SUL, 26 DE JUNHO DE 2023

 

BICENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO BRASIL UMA FESTA DA INTEGRAÇÃO HUMANA

 

Rafael Koerig Gessinger

 

A referência óbvia para o Bicentenário é o ano de 1824. E, de fato, é com base num acontecimento ocorrido naquele ano que gostaria de começar. Mas não é um acontecimento ligado a navios, viagens ou a um grupo de pessoas corajosas que deixou a Europa em direção ao Brasil. Não. Trata-se da estreia de uma composição musical. Em 7 de maio de 1824, em Viena, tocava-se, pela primeira vez na história, a composição que consagraria os seguintes versos do poeta Friederich Schiller:

 

Deine Zauber binden wieder,

Was die Mode streng geteilt,

Alle Menschen werden Brüder,

Wo dein sanfter Flügel weilt.

 

Que teus encantamentos liguem novamente

O que os modismos separaram severamente,

Todas as pessoas tornam-se irmãs

Onde tuas suaves asas demoram-se.

 

Schiller está falando da alegria (Freude), que tem o poder de fazer sorrir, que tem o poder de iluminar mentes e corações, que tem o poder de construir pontes e de fazer amigos, que tem o poder de vencer modismos que separam. É justamente nesse registro que a Comissão Oficial do Bicentenário da Imigração Alemã tem pensado o Bicentenário: como uma festa da integração humana. Alle Menschen werden Brüder!

Quando o Governador Eduardo Leite fez publicar, em setembro de 2021, o Decreto 56.110 para organizar as comemorações, o recado foi claro: o Rio Grande do Sul celebra a integração humana, o Rio Grande do Sul celebra o migrante e seus encontros culturais. Exaltemos, portanto, as culturas e seus encontros. E tudo isso não somente com os olhos no passado, mas, como muito bem vêm insistindo o Cônsul Simandl, o Diretor Hoffmann, do Goethe Institut de Porto Alegre, e o Secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Mateus Wesp, com os olhos no futuro.

É, por isso, que a Comissão também volta seus olhos para o futuro, provocando vários atores e diversas entidades. São muitas as frentes que estão sendo estimuladas: ciência, cooperação técnica, economia, agricultura, intercâmbio acadêmico, arquitetura, gastronomia, música, cinema, cidadania, direitos humanos, literatura, língua alemã, sustentabilidade, turismo, enfim, nada escapa ao Bicentenário.

Mas um elemento simbólico, talvez não tão palpável, tem a ver com a reflexão sobre a migração e o migrante de ontem e de hoje. Afinal, quem saiu da Alemanha há 200 anos? Quem chega na Alemanha hoje, no século XXI? Quem chegou no Brasil há 200 anos? Quem chega no Brasi hoje, em 2023?

A resposta deve ser única: Seres humanos. Pessoas! Nós! Quem saiu da Alemanha há 200 anos e quem chega na Alemanha hoje? Pessoas! Humanos! Quem estava no Brasil há mais de 500 anos e quem chegou ao Brasil nos últimos séculos? Pessoas! Seres humanos! Nós!

Antes de tudo, o fenômeno migratório é um fenômeno humano. Acidentalmente, é fenômeno acentuado neste ou naquele período, nesta ou naquela região. Mas deveríamos aproveitar nossa capacidade de nos debruçarmos sobre nós mesmos, sobre nossa própria história e nossa própria atualidade, para percebermos que a migração diz respeito ao ser humano, simplesmente, e não a este ou aquele grupo étnico ou político ou social.

Segunda-feira passada ouvi da boca de uma migrante colombiana que mora em Porto Alegre, por ocasião da Abertura da Semana do Migrante: “Sentir-se acolhido é o maior bem que um migrante pode experimentar.” Também foi muito repetida naquela noite a frase de São João Batista Scalabrini: “Para o migrante, pátria é a terra que lhe dá o pão!” A nova Lei de Migração, Lei 13.445/2017, bem como a política estadual de migração que será examinada pela Assembleia Legislativa, revela a maneira como o fenômeno da migração humana deve ser compreendido atualmente, a saber, assumindo a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, afirmando a acolhida humanitária e o repúdio à xenofobia e ao racismo, e promovendo o desenvolvimento econômico, turístico, social, cultural, esportivo, científico e tecnológico do Brasil. O migrante foi, é e será, sempre, uma enorme riqueza que deve ser comemorada e valorizada.

Prova disso é o sucesso de Santa Cruz do Sul e de todo o Rio Grande. O migrante de hoje é o bem[1]sucedido cidadão de amanhã.

Por tudo isso, o Bicentenário celebra a pessoa humana e sua capacidade de enfrentar desafios, de acolher, de se adaptar, de olhar o próximo como irmão e de partilhar sofrimentos e vitórias. O Bicentenário da Imigração Alemã quer ser a festa da fraternidade entre todos, sem exceção, uma genuína festa da humanidade inteira!

Com esse espírito, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, por meio dos Gabinetes do Governador e do Vice-Governador e das Secretarias que fazem parte da Comissão - Cultura, Turismo, Desenvolvimento Econômico, Comunicação, Segurança Pública e Justiça, Cidadania e Direitos Humanos - além da UERGS e de mais de 50 entidades da sociedade civil, coloca-se como parceiro de todas as instituições e pessoas interessadas em fazer, ao longo de 2024, eventos e projetos que celebrem a vida e a pessoa humana tomando como referência histórica os 200 anos da imigração alemã, mas projetando o passado até o presente e mirando o futuro como palco de valores cada vez mais sólidos, como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, tudo isso em torno de uma ideia viva e vibrante de dignidade humana.


quinta-feira, 15 de junho de 2023

CHAMADO PASSO DA AREIA

Desde jovem me fascinei com a obra de Gildo de Freitas. Ele foi um que vislumbrou fantasticamente o que estava acontecendo no mundo. Todos nós, que passamos dos sessenta, temos claras na retina as maravilhas de aqueles tempos. Na minha infância quase não havia crimes.Dormia-se de janelas abertas no verão. Praias de banho eram os riachos, onde abundavam os peixes . Em Santa Cruz havia vários locais de banho. Alguns ainda persistem , mas não com aquele viço daqueles tempos. De vez em quando meu pai nos levava de caminhonete para Rio Pardo. Eu me deslumbrava com a água do rio . Minha mãe e minhas irmãs se vestiam com aqueles “ maiôs” super pudicos e longos. Voltávamos todos com o rosto queimado na caixa de trás da caminhonete Dodge canadense ano 1955, se não me engano. Tinha uma cabine metálica na frente e atrás uma cabine de madeira com toldo em cima. Abaixo vai, portanto,o que Gildo de Freitas preconizou. Vou deixar intactos seus versos, sem nada corrigir, conquanto haja imperfeições de gramática. Importante é o conteúdo. …………… “Chamado passo d'areia Foi o lugar que eu nasci Foi ali que eu conheci Cousas que a gente admira Muçuns, jundías, taraíras Nos meus tempos de guri Não é querer me exibir Mas taraíras davam tantas Que nas quintas feiras santas Nós pescava por ali Mas quem tinha mais dinheiro Terminou com o nosso apoio Compraram nossos arroios Findaram nossos pesqueiros Um arroio companheiro Pesqueiro de bom tamanho Eram até praias de banho Pra quem não tinha dinheiro Naquelas partes mais altas Por onde a água descia Não eram só pescarias Davam muitas produções Auvoredo plantações pastagens e leitarias Da terra tudo nascia Pepino, feijão miúdo Era uma terra para tudo Aipim, melão, melancia Mas pode crer minha gente Que isto foi num disparato Derrubaram até os matos De angicos e Cambuíns Foram se metendo assim Que nem piolho em custura E as hortas de verdura Viraram todo em jardim Está derrota foi feita Em muitos poucos momentos Foram abrindo loteamentos E as construções vieram vindo Outros vendendo e saindo Mesmo que um papel no vento Eu conto com sentimento Tudo que era bom se foi Plantação, cavalo, boi Festança carreiramento Tudo se foi no momento E aonde pastava as vacas Hoje só se enxerga placas Aluga-se apartamentos.” …………….. E tudo isso aconteceu. Melhorou tudo de uns tempos para cá? Não esqueçamos que Passo da Areia se situava num lugar simples e longe do centro de Porto Alegre. Ali havia criação de animais, era um lugar bem distante e pouco habitado. E hoje? Tudo que era bom se foi…

quinta-feira, 1 de junho de 2023

CAUSOS DE FUND0 DE CAMPO

A noite foi toda de temporal e vento. Amanhecera com sol. Nas casas e galpões, nada de anormal, a não ser alguma folha de zinco solta. Toca o celular: é Joca, caseiro de uma morada no fundo de campo, noticiando que vários cochos de sal tinham tombado ou se destelhado. Chamei meu capataz, misto de campeiro, zootecnista, veterinário, alambrador, marceneiro, mecânico e outras coisas: -tchê, pega o trator piqueteiro, atrela o reboque, carrega com umas ” taubas”, pregos, folhas de zinco, ferramentas, pão e carne e vamos rondar as invernadas. Já na primeira divisamos, ao longe, folhas de zinco espalhadas, na outra o cocho virado. Entre uma e outra ia observando os animais que, ante o rumor do trator, corriam para o rodeio. Por volta do meio dia chegamos a uma das minhas invernadas favoritas - a da Tapera. É fácil reconhecer o lugar onde um dia já houve uma casa: sinamomos vetustos, alguns carcomidos, algum pé de limoeiro, um resto de cerca de pedra. Pegamos alguns galhos secos , fazemos fogo e espetamos a carne. Vou até a sanga, lavo as mãos e o rosto. Tirei as botas, sentei-me numa pedra e coloquei os pés na água fria. Quem teria morado aqui? Não longe, um túmulo de campanha onde se lê o falecimento ocorrido em 1.900. Seria um posteiro dos Garcia, ou dos Mattos, ancestros donos ? Retiro-me um pouco da sanga e sento-me ao pé de um angico.Fecho os olhos e escuto o marulhar das águas e o gorjeio dos pássaros. Ouço, ao longe um tropel de cavalos e as esporas tinindo. Um, fala mais alto e dá ordem de desmontar. Conversam sobre batalhas e cerco ao inimigo. Abro os olhos espantado e nada mais escuto. Cerro-os novamente e logo ouço risadas de crianças se espadanando na água. Usam termos arcaicos, com sotaque quase português, falam que, quando crescerem, querem ser alferes; outros, que vão defender a República Riograndense. Abro de novo os olhos e o rumor cessa. O vento aperta um pouco e as árvores ciliares inclinam-se como a me dizerem que sim, que testemunharam tudo isso, que viram até amor ser feito por aqui. Sim, elas, as árvores, que guarnecem sangas, matos e bichos, são as deusas mudas e guardadoras perenes de tantas histórias. -patrão, o churrasco tá pronto. Vamos comendo a carne e o pão, sem talheres. Indago ao capataz: - tu nunca ouviste, nesses fundos de campo onde nem satélite passa no céu, vozes de gente que já morreu? -Vozes não, só umas risadas ou algum choro de mulher em noite de lua cheia. —--------- Para mim o melhor candidato a ocupar uma vaga de Desembargador é o Dr. Ricardo Hermany. (Colaborou Maristela Genro Gessinger.)