GAUDÊNCIO SETE LUAS ANDA TRISTE
Guilherme Socias Villela*
“Quem quer levar oferendas pra Gaudêncio em noite escura,
leve bom trago de venda, mate-amargo e rapadura” - Luiz Coronel.
Gaudêncio é um
velho taura. Romântico. Criado pela imaginação de uma mente privilegiada. Um
vivente de campanha que um dia “pulou a cerca da vida”.
Onde Gaudêncio anda hoje ninguém sabe. Comenta-se que aquele xiru
fantástico nasceu no pampa gaúcho. Aquerenciado naqueles tapetes verdes.
Pastos bíblicos. Arbustos. Umbus solitários. Casuarinas.
Céus azuis emoldurando nuvens brancas - por vezes sombrias, chamando os
temporais que afastam os pássaros. Rebanhos de gado. Ovelhas. Cavalos de
variadas pelagens. Vez por outra, a lo lejos, se vê um ginete - um centauro
rodeado de cuscos amigaços, fiéis, prontos a avançar sobre javalis invasores.
Ah! O
fascinante o pampa gaúcho.
Ocorre que, recentemente, o velho Gaudêncio assistiu na
televisão (deve ter sido em algum canal celeste de assinaturas) o desfile
temático da Semana Farroupilha deste ano. (Desta vez, nela incorporaram, como
importantes na produção das riquezas do Rio Grande do Sul, descendentes de
gaúchos imigrantes - dentre eles, alemães, italianos e poloneses). Mais
recentemente, viu o Encontro de Artes e Tradição Gaúcha, em pleno parque da
Octoberfest de Santa Cruz do Sul. Nos dois eventos o velho ficou entre surpreso
e fascinado.
Entretanto,
meditando na sua sabedoria campeira, percebeu, desconfiado que nem cavalo
torto, que muitas coisas vêm mudando no pampa. Atualmente, nas estâncias mais
avançadas, se fala em genética de bovinos, pastagens artificiais, confinamento,
certificação, rastreamento dos rebanhos de gado destinados aos mercados
internacionais, além de chips nas orelhas dos novilhos e outras coisas
inimagináveis para o seu tempo. (Mudaram as relações de produção e as mútuas
lealdades das antigas relações trabalhistas entre patrões e peões.) Nessa
ocasião, viu águas resplandecentes nas plantações de arroz; viu novos amplos matos
de eucaliptos e, novidade, imensas extensões de terras pampianas preparadas
para o plantio de soja - nunca tivera visto isso em seu tempo do lado de cá!
Hum! Pensou, deve ser o progresso.
Ademais, na
querência das almas dos justos, onde deve estar o velho Gaudêncio, ele também
notou que as melodias dos cantos do seu tempo vêm mudando. Pois o velho andou
espiando, entre uma nuvem e outra, e percebeu que a música nativista vem sendo,
aos poucos, contaminada por sons estranhos. Escutou, num dia desses, a música
sertaneja se intrometendo!
Ouviu melodias do seu tempo emolduradas por uma bateria
própria de animados rocks musics! Guitarras elétricas! Até um órgão apareceu -
com suas pedaleiras e tubos vibrando em sons desajeitados! Só faltou o
saxofone.
Por fim,
voltando para o seu canto das almas, mateando, o velho Gaudêncio aprontou-se
para um jogo de osso e um truco gaudério. De longe, ainda olhou, com saudades,
para uma sanga que conhecera em vida. Nela viu um peixe de prata - era sua
adaga que, quando partiu, a havia atirado no fundo do rio.
Como disse seu
talentoso criador, hoje, se alguém ver
“um pássaro bater asas, é Gaudêncio envolto em plumas”.
Depois,
Gaudêncio Sete Luas partiu. De novo. Meio triste.
* Economista, ex-prefeito de Porto Alegre.