A
NEUROCIÊNCIA E A CRIANÇA DE ZERO A TRÊS ANOS
Iole
da Cunha
Neonatologista
Porto
Alegre, RS
Quando
nasce um bebê, antes mesmo que a mãe o abrace, o olhe ou o toque, já se iniciou
neste novo individuo um célere processo de desenvolvimento. Principalmente em
seu cérebro. Mas diferentemente da maioria dos seus órgãos, em que novas
células se originam da divisão das já existentes, o cérebro cresce graças a
modificações dos neurônios já existentes. Como resultado da nova experiência
interativa do “organismo bebê” com o “objeto mãe”, iniciado antes do
nascimento, os aproximadamente 100 bilhões de neurônios que constituem a base
genética do cérebro humano vão se modificar. Para cumprir sua função de se
comunicar entre si, permitindo que a informação que vem da experiência viaje de
uma parte do cérebro para outra, surgem redes neurais, que se constituirão na
estrutura do que será o indivíduo como um todo (self). Esta microestrutura
neural, base da macroestrutura do cérebro, gera funções que vão desde a capacidade
de regulação homeodinamica, a auto-regulação afetiva, a literacia, a função
mental enfim com os sentimentos, a comunicação social até outras mais
sofisticadas como a linguagem, o aprendizado, e a possibilidade de elaborar
conceitos e buscar soluções.
Enquanto
um pai tenta confortar um bebê que chora ou uma mãe conversa com seu filho numa
relação “olho-no-olho”, ou enquanto o neto ouve a história que a avó lê, numa
questão de segundos, milhares de células do cérebro destas crianças proliferam,
se desorganizam, são eliminadas, reorganizadas e organizadas pelo estímulo
destas experiências particulares. Formam-se novas conexões, conferindo mais
definição e complexidade ao intrincado circuito que poderá permanecer pelo
resto da vida e se constituir naquilo que será o adulto.
Mas,
estes conhecimentos são recentes. Faz pouco, ficou-se sabendo que o bebê não é
uma tabula
rasa ou
uma massa informe moldável segundo os desejos do adulto. Até bem recentemente,
não era acessível e generalizado o conhecimento da enorme atividade e
complexidade do cérebro do bebê. Também não se sabia quão flexível o cérebro
pode ser! De quinze anos para cá, os neonatologistas, agregando conhecimentos
de outras disciplinas, principalmente da neurociência, puderam explicar
cientificamente quem eram realmente os bebês sob seus cuidados. Na verdade, os
neurocientistas se encarregaram de mostrar que a determinação genética que
organiza o cérebro do bebê é importante até 21 semanas de gestação. A partir de
então e principalmente com o nascimento (prematuro ou a termo), a epigenética
ou seja a experiência vivenciada desde os primeiros momentos, pelos cuidados,
têm um impacto tão grande na arquitetura do cérebro, a ponto de se estender às
capacidades do futuro adulto.
Os
conhecimento trazidos recentemente pelas ciências do cérebro junto a
experiência clínica como intensivista em UTIN (Unidade de Tratamento Intensivo
Neonatal) fez desenvolver a pretensão de acreditar que cuidados adequados nos
três primeiros anos poderiam fazer a profilaxia e proteger os bebês não
nascidos, os recém-nascidos, suas mães e famílias das terríveis conseqüências
que ensombrecem os relacionamentos atuais.
O bebê
Nos
últimos anos os avanços da neurociência confirmaram o que os neonatologistas e
demais agentes de saúde das UTIN suspeitavam: o bebê não é tabula rasa,
mas indivíduo dotado de processos mentais ou mente que
emerge de uma estrutura cerebral. Desde 20
a 24 semanas de vida pré-natal, quando se completa a
migração neuronal, e o cérebro já tem 100 bilhões de neurônios, o pequeno
amnionauta, ou aeronauta se for um prematuro limítrofe, é capaz de perceber a
sua circunstância, o ambiente que o cerca, e formar proto-representações
decorrentes das experiências e emoções que esculpirão os mágicos caminhos do
seu cérebro em desenvolvimento e formarão seu self.
A
neuro-embriologia define o córtex límbico-órbito pré-frontal como a matriz da
mente de zero a três anos, ou seja desde o limite da prematuridade, pois o bebê
zero é o
recém-nascido, quer seja prematuro extremo ou a termo. É um período de
imaturidade anatômica, mas de maturidade funcional tanto maior quanto mais
prematuro for o bebê. Sua função mental é definida pela habilidade de
categorização perceptual, que
permite ao bebê a inscrição de sensações de afetos positivos, que lhe determina
sentimentos de segurança e acolhimento. Ou de afetos negativos determinando
insegurança e desamparo. São os dois modos de perceber o mundo neste período
inicial, e se estes registros forem contínuos e suficientemente fortes, eles têm
grande chance de esculpir circuitos neurais duradouros podendo interferir no
desenvolvimento e na aquisição das habilidades cognitivas. Nesse período do
desenvolvimento, os órgãos dos sentidos são especificamente maduros, para
conferir ao bebê uma fina e específica somatosensorialidade, e enviar os
estímulos até o córtex das emoções no sistema límbico-órbito frontal, gerando
proliferação das terminações sinápticas e graças principalmente ao hipocampo e
amigdala, arquivar as memórias destas vivências e criar seu conteúdo emocional.
Aos três anos, começa a madurecer um novo processo mental: a categorização
conceitual,
pelo surgimento da consciência assentada no crescimento e amadurecimento do
córtex executivo. A criança começa a dar-se conta de que o outro não pensa como
ela. Esta consciência gera a conceitualização e a percepção da individualidade.
O
senso coerente de consciência, que se desenvolve na experiência interativa com
o outro (self-non-self, mundo, circunstância) depende em muito da percepção do bebê de
sua interação com o cuidador, forjada nas vivências do seu passado de zero a
três. Poderá ser uma percepção de sintonia, ou Mesmo desde antes da concepção,
visto com estes novos olhares, o bebê necessita ser desejado porque deve
perceber que o que lhe garante a satisfação não é a mera presença da mãe, mas
que ela o deseja. E desta forma passará a desejar o desejo da mãe e não a mãe em
si. A percepção de afetos positivos está na base da caspacidade
de auto-regulação afetiva, e na aquisição das funções executivas responsáveis
por iniciar e desenvolver uma atividade com um objetivo final determinado. O
bebê de zero a três, necessita que seu cuidador (mãe) use seu córtex executivo
(já que até o final deste período o seu ainda não se desenvolveu para esta função)
a fim de ajuda-lo a nomear o mundo e se tornar autônomo o que começa a ocorrer
aos três anos.
Estes
conhecimentos geram a responsabilidade de modificar os cuidados do início da
vida. São uma nova ferramenta capaz de mobilizar o bebê interno do cuidador
enquanto ensina uma nova linguagem, não a da palavra articulada, mas a
pré-verbal, somatizada no corpo do bebê, imaturo para saber porque os outros
não pensam como ele, mas ainda incapaz de comunicar seu desamparo pela
semântica e a gramática. Admite-se que os distúrbios do desenvolvimento e a
violência social nascem da percepção de abandono e negligência neste período
inicial e, para preveni-los, é necessário cuidar bem das crianças desde o
ventre materno. E até antes,explicando aos cuidadores delas o ser humano como
criança e suas vicissitudes contingenciais.
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