Muito bom este texto.
A propósito, há uns anos,
escrevi artigo sobre a enganosa (ou fraudulenta, ou, pelo menos,
equivocada) estética do acampamento farroupilha, realizado todo santo ano em
Porto Alegre, desarmonizando o Parque da Harmonia perante nossas próprias
tradições. Pintei o acampamento como a melhor síntese de como é possível
detratar e degradar uma cultura inteira, enxovalhando os seus valores. E de
como não-mostrar e não-contar como é e como vive um povo em suas origens
culturais.
Na oportunidade, qualifiquei
aquilo de favelão gaúcho anual, onde, por uns dias (os mais chuvosos do ano),
tem-se ali a maior concentração de trogloditismo pampeano-gaudério por metro
quadrado do mundo todo.
É o que se pode extrair da cena
artificial de uns 400 casebres de pau-a-pique e telhado de zinco, chamados de galpões,
amontoados por entre ruelas em geral embarradas. Cada casebre destes com seus
espaços amiudados pretendendo, ao estilo de cada um, “contar” para os passantes
sobre as coisas do Rio Grande do Sul. Ao lado de cada casebre, a indefectível
churrasqueira esfumaçante, peloq eu o resultado de 400 churrasqueiras é uma
defumação bestial de tudo e de todos, numa agressão aos olhos (literal e
figurativamente), enegrecendo pulmões e idéias. E por aí me fui, desgarrado, a
descrever os anversos e antíteses estéticas daquilo tudo lá, eviscerando-lhe os
erros crassos e as contradições, em todos os aspectos. Isto tudo foi me
saltando à mente do tanto que carrego na memória de minha infância e
adolescência, quando estive em estâncias, granjas e fazendas. Ali vivia a
peonada, a capatazia, os donos de estância, genuinamente. Parentada toda do
interior de Cruz Alta, Panambi e Porongos, com cenários gaúchos originais e autênticos
onde passei muitas das minhas férias. Por ter conhecido, na origem e estado de
pureza, a vida do gaúcho, do mais modesto ao abastado dono de estância, por
isso mesmo, talvez, os engodos e contradições do tal acampamento xucro me sejam
tão evidentes e gritantes, ao ponto até de incomodarem como um coice no
estômago.
Recebi críticas, é claro,
algumas pouco veneráveis ou edificantes à minha modesta existência, outras
pouco polidas. Teve umas tão sutis quanto, digamos, talhos de machado em tronco
de lenha.
A crítica expressada foi
realmente compreendida, é verdade, por bem poucos.
De lá para cá, apenas vi
confirmarem-se os diagnósticos. Na edição deste ano de 2013, teve até o triste
e emblemático caso do gaúcho montador de casebre que despencou de cima de um
telhado do favelão abraçado a uma motosserra ligada a toda, fabricada na China.
Por sorte, o vivente “só” perdeu um braço inteiro, pois podia ter se decapitado
(tecnicamente, seria uma auto-decapitação por método chinês). Ora, vejam:
galpão crioulo gaúcho montado com motosserra chinesa..?
Com base neste texto do Ruy,
digo-lhes que aquele acampamento é um estereótipo às avessas do que esteve ou
está na alma e no corpo do verdadeiro gaúcho. Uma ofensa, em todos os sentidos,
às nossas tradições mais caras. Não é nada daquilo lá.
Algo ou alguém deveria encerrar
o engodo, num canetaço só, extirpando o tal acampamento esquizofrênico-gaudério
do calendário cultural de Porto Alegre e do Estado e isto já ajudaria muito a
preservar a nossa memória cultural.
Bem pior do que cometer um erro
é reeditá-lo todos os anos, por questão de tradição...
As secretarias estaduais que
cuidam de cultura e turismo, em conjunto com algumas prefeituras, poderiam
adotar fazendolas antigas que retratem, genuinamente, sem nenhuma aberração ou
apelo troglodita, o cenário original e simples da cena campeira do RS, onde a
cultura gaúcha se desenvolveu. Um lugar que possa contar esta cultura,
retratando-a com os seus elementos culturais todos, característicos de como
vivia o gaúcho em seu habitat, em seu nascedouro cultural, para quem desejasse
conhecer. Um fazendola, com campo no volta e uma só churrasqueira, um só
galpão, mais a casa-sede do estancieiro. Seriam conjugados ali os elementos
gaúchos da montaria, do peão, do mate, do campo, do gado, da campereada, da
música, da prosa, das lendas, da poesia, da tosquia, da marcação, da castração,
etc. Um lugar que aconchegasse os visitantes, os turistas, que os trate
bem, prestando-lhes serviços de qualidade, desde hotelaria campeira até a culinária
gaúcha, mais passeios a cavalo, etc.
Algo de real qualidade, algo
realmente cultural, que funcionasse de forma permanente, muito ao contrário e
ao oposto do que ocorre no frenesi defumado e tresloucado do atropelamento
gaudério do Parque da Harmonia (mesmo na parte em que é chamado pelo nome do
fundador da RBS, continuo com o hábito arraigado de chamar o lugar de Parque da
Harmonia...).
Quem quiser, poderá ver nestas
fazendolas algo realmente autêntico e genuíno, um pedaço vivo da vida e da
História do RS do campo e da lavoura, disponível em qualquer das cidades que
adotassem o projeto, montando a sua fazendola original e abrindo suas porteiras
para a visitação pública. Os europeus conseguem fazer isso, por exemplo,
muito bem. Porque nós, aqui, seus descendentes em grande medida, não
conseguimos?
Um projeto que, muito
possivelmente, se auto-financiaria e nos deixaria de lambuja a opção de
levarmos para lá os amigos que viessem de fora (pois ninguém, em sã
consciência, leva um amigo de fora para “visitar” o acampamento do Parque da
Harmonia, certo?).