A meio caminho, entre nossa casa e minha
escola, morava a família Hagemann. Nas semanas que antecediam o Natal, eu
apeava ali, quase todos os dias. Romildo, o filho mais novo da casa, era meu
amigo. Quando me via aparecer na coxilha, saía correndo buscar uma espiga de
milho para meu cavalo. Depois, íamos admirar o trabalho de sua mâe, dona
Annilda, ocupada na montagem do presépio. Ela iniciava o trabalho na primeira
semana do Advento, com a criacâo das pastagens. Fazia o canteiro com uma camada
de algodâo umedecido, colocava tecidos de linhagem em cima e semeava sementes
de arroz.
-
No Natal, as ovelhas dos pastores de Belém podem pastar a vontade –
explicava o Romildo.
Dona
Annilda nâo poupava em detalhes. Em um dos cantos, ela plantava pequeno capâo
de mato, com pés de banana, butiá, pitanga e camélias, que criava especialmente
para esse fim; no outro lado, fazia um monturro de pedras, com esconderijo para
animais selvagens; no centro, botou a nadar meia dúzia de gansos e cisnes,
sobre um lago feito com a lâmina de antigo espelho.
Ficávamos admirando esse belo quadro. Bem
ao longe, na linha do horizonte, podíamos reconhecer José e Maria, a caminho do
estábulo e da manjedoura em construçâo.
-
Maria e José vâo chegar aqui
somente no Natal – informou meu colega.
Dia após
dia, dona Annilda acrescentava detalhes ao presépio, até completar o cenário com
o enfeite do pinheirinho.
Nessa época do ano, quando era sábado, o
professor reunia todas as classes na parte da manhâ. Para controlar mais de cem
alunos e alunas, andava entre os bancos e ostentava sua régua de cerne de
guajuvira, pesada e dura. Costumava puxar as calças dos alunos pelos fundilhos,
com a mâo esquerda, e baixar a régua com a mâo direita, com força, geralmente
com raiva, até cansar o braço.
-
Disciplina em primeiro lugar!
- Com esse método – dizia-me um professor
da geraçâo posterior – os jovens tornam-se medrosos e perdem qualquer
iniciativa e criatividade, por medo do erro e do castigo.
Nos meses de novembro e dezembro, os
sábados eram dedicados aos ensaios para a Noite de Natal. Todos os alunos participavam.
Uns declamavam poesias, outros cantavam, ainda outros atuavam nas encenacôes,
porque todos os pais queriam ver seus filhos no palco. A mim cabia cantar “Ó
Vinde Meninos”, na segunda voz, além de fazer o papel de Papai Noel.
- Tu és alto e forte – exagerava o
professor – tu tens que botar o Valdir no saco!
Valdir era um colega baixinho e magro,
fácil de botar no saco. Cabia a ele, por isso, o papel de guri mal educado.
Era a cena mais esperada da noite. Eu
entrava com enorme saco de moagem sobre os ombros e uma vara na mâo. Distribuía
chocolatinhos e caramelos para as crianças bem comportadas e castigava os mal
educados. Já que o Valdir, no papel de menino malcriado, nâo se deixava
intimidar, levava algumas varadas sobre os fundilhos, antes de ser enfiado no
saco.
Terminada a programaçâo, voltávamos para
casa. A caminhada de 7 quilômetros fazia parte, todos os anos, do Natal da
nossa família.
Numa dessas noites, quando cruzamos a mata
dos Koefender, uma coruja do mato piou.
-
O que foi isso - queriam saber os irmâos menores, assustados.
Antes que o pai respondesse, o graxaim
latiu, e o Brazino dos Wolff, ao longe, respondeu. Olhei para a escuridâo que
nos envolvia e senti um arrepio.
-
Pai, posso carregar a lanterna?
-
Pega a lanterna – respondeu o pai – e depois, vamos todos caminhar de
mâos dadas.
Assim,
de mâos dadas, atravessamos a mata. Senti-me protegido e relacionei
esse sentimento de
aconchego e segurança com o anúncio do anjo aos pastores de Belém:
-
Nâo tenham medo ...
Quando
chegamos na divisa dos Hagemann, decidimos olhar o presépio de dona Annilda,
como fazíamos todos os anos. O menino Jesus repousava sereno na manjedoura, e o
anjo fazia o anúncio:
-
... pois hoje vos nasceu o Salvador.
- Bem – disse o pai – vocês podem olhar mais
um pouco, mas eu já vou
indo. Talvez o Papai Noel
precisa da minha ajuda, para repartir os presentes que vai trazer para vocês.
Quando chegamos em casa, encontramos 7
pratos sobre a mesa da sala de visitas. Em cada prato havia um pequeno
chocolate, alguns caramelos, bolachas coloridas feitas pela mâe, e um “presente
útil”, como dizia o pai. O presente útil podia ser um par de sapatos, um
material escolar, uma camisa, um vestido. Todos estávamos muito felizes, e eu
ia dormir com um sentimento profundo de paz e aconchego.