Caro ensaísta acadêmico
Franklin Cunha,
Seu belo e instrutivo
ensaio “Funerais linguísticos” (agora no Correio do Povo, Caderno de
Sábado, 30/3/19), me induz a propor algumas reflexões. A matéria ventilada
é rica, exibe variados aspectos, todos interessantes.
Seleciono tão só alguns pontos.
O perigo de descaracterização da língua
francesa pela invasão incontrolável de palavras da língua inglesa, denunciado
por René Etiemble, mutatis mutandis, ameaça também a nossa língua, que
se vê ante um sem-número de termos desse gênero invadindo reportagens, artigos
e colunas na imprensa cotidiana (v. g., compliance, 50% off, startups, spoiler,
for sale, whatsapp, e-commerce, workshop, etc.). Mas não é essa questão que me
interessa aqui e agora, senão outra, a da emergência da linguagem humana, “estrutura
de grande complexidade, definidora da humanização do homem”, como escreve
acertadamente o eminente ensaísta.
É verdade, a possibilidade da fala é uma
condição adquirida in utero; mas é duvidosa a afirmação de que as
crianças “não aprendem a falar: [pois] já o sabem”, atribuída a linguistas como
Noam
Chomsky e outros. Essa tese é platônica: implica a existência de ideias inatas, que
é contrariada pela majoritária tradição aristotélica. Segundo Aristóteles, na
origem, a mente ou a alma (psyché) é uma tábula rasa em que nada está escrito.
A partir da experiência sensível é que nela se lançam os conteúdos do saber.
Assim se realiza verdadeira e progressiva aprendizagem. Sendo assim, o que é
inerente à natureza é a capacidade de conhecer, não seu conteúdo. Este é
adquirido com a experiência.
Outra questão relevante está implicada na
afirmação bem lançada de que o “substrato anatômico e neurológico complexo e
único no reino animal” torna possível a emergência da linguagem. Esconde-se nisso uma sutileza
que vale a pena desvendar: a distinção entre condição e causa. “Tornar
possível”, permitir, é função da condição, não da causa. Condição não produz o
efeito (no caso, pensar, falar), mas permite que a causa o produza.
Segundo a antropologia filosófica, o
substrato anatômico e neurológico é condição do pensamento, do conhecimento
racional, da linguagem. Sua causa é a parte ultrabiológica do composto humano:
a psyché, a alma racional, o noûs que, segundo Aristóteles, “vem
de fora”; e, na concepção hebraico-cristã, é criação direta de Deus, não
produto evolutivo a partir da matéria. Em virtude desse componente racional, o
ser humano, verdadeiro “centauro ontológico” composto de uma parte imersa na
circunstância e de outra dela emersa (José Ortega Y Gasset), tem uma plenitude
interior que o impele à criação da linguagem, a fim de satisfazer a premente
necessidade de se comunicar. Os animais não humanos, carentes de racionalidade,
não tem semelhante plenitude interior que os incite à linguagem lógica. A
propósito dessa matéria, o padre jesuíta Balduíno Rambo, cientista gaúcho de
renome, deixou este registro curioso: O macaco tem aparelho fonador perfeito,
condição que lhe daria plena possibilidade de falar. Porém não fala, porque,
sem inteligência ou racionalidade e, pois, sem interioridade, “não tem nada a
dizer”.
Essa disquisição da antropologia
filosófica escapa à linguística, à psicologia experimental, à ciência empírica in
genere. A filosofia, por sua vez, sente-se à vontade em dar conta disso, e
o faz com boas razões teóricas desafiadoras até da peremptoriedade das posições
antagônicas, materialistas. Entre elas há quem (v. g., Karl Vogt) defina o
pensamento como “secreção do cérebro” à semelhança da bílis, segregada pelo
fígado; e da urina, pelos rins. Errado. A verdade é outra: o substrato
anatômico e neurológico do composto humano é tão só condição do pensamento e de
sua expressão pela linguagem, não sua causa, como foi evidenciado.
Caro Acadêmico Franklin Cunha. Agradeço a
oportunidade de ler seu belo ensaio, que me impeliu a propor esta singela
reflexão.
Um forte abraço.
José
Nedel