Depois que um dos suados coveiros terminou de passar as
costas da sua colher no ainda úmido reboco que revestia os oito tijolos sentados para
fechar a gaveta mais baixa da ponta leste daquela nova parede já quase cheia de gente
que quase ninguém ali conhecia e, sem grande resultado, com ela ainda limpou o pouco
que respingara da última tarefa do dia no chão que o solaço das cinco fazia queimar,
onde em seguida seriam depositados buquês e coroas de flores (enquanto o outro se
refrescava entornando duma garrafa pet o que sobrara de água e já acomodava as
ferramentas no carrinho de mão), ocorreu à velha Elvira, que só estava ali pelo neto e
dele não queria se afastar, que aquele ato de cortar o pesado silêncio com duas ou três
secas raspadas do metal no chão de pedra de areia, afetando capricho, era a forma
cerimonial daqueles brutos anunciarem que chegava ao fim a sua parte naquela cena, de
resto, alheia. Todavia, como não fossem entendidos, sempre ainda lhes cumpria
fazerem um ao outro um meneio com a cabeça e murmurar o pronto a quem estivesse
mais perto - que foi quando o olhar da mãe do morto desviou-se da nora e das netas e
convocou o bastardo Mathias, que trazia o nome bordado no bolso da camisa de tergal
branco impecavelmente passada e que, silenciosamente, investiu-se da missão de, pela
primeira vez na vida, escrever o nome completo do pai. Sem que ninguém visse donde,
catou um palito de fósforo e, com o esmero do ofício, na grafia de cada letra (de fôrma)
e no espaço entre elas se demorou um pouco mais que o necessário, porque ali, também
pela primeira vez, chorou. Nunca chorara aquela falta, nem quando criança, porque não
queria que a mãe e a avó se achassem insuficientes – a avó paterna, a dura Leonor,
sempre o reconhecera e não escondia isso de ninguém, embora pouco se vissem. Mas
naqueles demorados segundos chorou, agachado perante a carneira do pai e de costas
para a família e os amigos dele.
Fez ainda uma cruz antes da data de morte e uma estrela antes
da de nascimento, que sabia de cor porque desde pequeno acompanhava fotos suas na
coluna Zeny Calvelo, d’O Jornal de Uruguaiana, hoje extinto, que mesmo quando
morou em Porto Alegre dava um jeito de comprar quando se aproximavam os dias da
festa que o pai fazia todos os anos. Ou que faziam para ele, entidades, partidos e até
igrejas.
Na saída do cemitério, quebrou o gelo brincando com o filho
(adotado) de uma 'parente', um mulatinho de 5 anos chamado Bernardo, e disse coisas
protocolares a alguns do enxame que arrodeava dona Leonor, e, olhando-a nos olhos,
um “muito obrigado”, que ela entendeu.
Pegou a velha Elvira pelo braço e dali foram direto buscar
Bento no Colégio Santana. Era sexta-feira, quinto dia de aula da primeira série, e só
aquele acontecimento - que deixou escuro o lado direito do rosto que jamais tocou - um
coraçonaço em sono, de madrugada, do qual Mathias foi avisado ainda cedo pela avó,
que ligou de dentro do quarto do filho ali inerte (que não a chamara para o mate) após
fechar a porta para abafar a choradeira instalada na velha casa -, só aquela notícia lhe
tirou do bloco cirúrgico naquele dia, naquele horário.
O guri veio correndo, com a mochila aberta e o caderno na
mão. Queria mostrar o que fizera aquele dia: tinha conseguido desenhar os nomes dele,
da mãe e do pai na folha de abertura, aquela que vem depois da capa.
Mathias pensou em arrancá-la, mas como não seria bom
exemplo mutilar o caderno, resolveu esperar o final do ano para guardar a grafia - tão
cedo grafada - do seu nome.
Aqueles garranchos fariam toda a diferença – e o guri nem
sabia!