Venho alertando, em vários fóruns de discussões jurídicas, para a
aberração em que converteu-se, aqui no Brasil, o polêmico instituto chamado
“delação premiada”. Através dele, um suspeito, assumindo-se réu confesso,
negocia com agentes e autoridades públicas a delação de outras pessoas que,
segundo o delator, teriam incorrido em supostas práticas ilegais. Faz isso em
troca da garantia de benefícios futuros, quando do seu indiciamento ou
denúncia. O referido instituto é polêmico em todos os países em que foi
adotado, notadamente nos EUA, onde o poder de barganhar com o suspeito é
exclusivo do Ministério Público. Discute-se lá qual o tipo, tamanho e limites
do poder que a sociedade pode ou deve outorgar a um agente público para fazer o
contrário do que é pago para fazer, ou seja, livrar alguém que é culpado
confesso de responder pelos seus crimes.
Aqui no Brasil, o instituto chegou com furor, na forma de uma
grande apoteose. Tudo agora, no mundo penal, gira em torno de delações
premiadas. Foi-se, aqui, muito além do que o instituto da delação premiada
pretendia propiciar, em sua origem. No Brasil, delegados de polícia e talvez
até investigadores estão autorizados a abrirem “mesas de negociação” com
acusados de crimes que se encontrem presos, preventiva ou provisoriamente. E,
justamente, por estarem presos a um sistema prisional considerado de Idade
Média, conforme recente posicionamento da justiça italiana, os delatores cedem
às coações e chantagens de delegados e policiais para que delatem outras
pessoas em troca, simplesmente, da liberdade ou da possibilidade de serem
excluídos de indiciamentos ou denúncias futuras. Para a autoridade policial,
com certeza, é muito mais fácil e cômodo permanecer no conforto de delegacias e
esperar que o suspeito preso aceite “negociar” delações do que sair a campo,
atrás da coleta de provas materiais concretas contra outros suspeitos. Nestas
condições, os delatores são induzidos a incriminar quem eles queiram. E suas
delações, malgrado a consistência e veracidade sejam altamente duvidosas,
adquirem, no Brasil, “ares” de verdadeiras sentenças condenatórias dos
delatados, à margem de qualquer processo investigatório ou penal.
Finalmente, matéria publicada no jornal Consultor Jurídico vem
jogar luzes sobre este nebuloso assunto, após descobrir-se que um criminoso que
negociou sua própria imunidade com o Ministério Público dos EUA, numa delação
premiada, delatou como criminosa uma mulher que, descobriu-se agora, era
inocente. Ela passou 12 anos presa, condenada com base na exata delação
premiada do bandido, fazendo soar o alarme quanto à efetividade do instituto
para apressar a conclusão de inquéritos e resolver processos emperrados por
falta de provas.
Vale a pena conferir. Está em http://www.conjur.com.br/2015-fev-18/eua-expoe-riscos-delacao-premiada-dizem-especialistas
Se lá, nos EUA, está ocorrendo este debate, o que se pode esperar
que ocorra aqui no Brasil, onde quase tudo, simplesmente, adquire dimensões
surrealistas? Além de ser utilizada de uma forma distorcida, a delação
premiada à moda brasileira oferece enormes riscos à segurança judiciária,
porque está sendo utilizada quase que em substituição à atuação dos agentes
públicos do Estado, invertendo as posições entre inocentes e culpados e
outorgando poderes quase ilimitados a quem é réu confesso. Aqui, em
nossas paragens, o instituto ganhou ingredientes os mais incríveis, tipicamente
brasileiros. O ponto saiu, como sempre, totalmente fora da curva, pois, dada a
lerdeza e a incompetência notórias das estruturas oficiais existentes
(polícias, MPs e Poder Judiciário) em fazer seus respectivos ofícios de
investigar, formar a culpa, abrir o processo penal, instruí-lo, e, por fim,
julgar, condenando ou absolvendo os réus, o instituto da delação premiada
tornou-se uma espécie de resposta rápida à sociedade, um fast-food judiciário,
uma ligação-direta da justiça, um meio de alívio para delegados, promotores e
magistrados pressionados pelas cobranças em razão da marcha-de-tartaruga de
inquéritos e processos. É mais fácil apresentar logo, um “culpado delatado”,
deixando para a imprensa nacional fazer o trabalho de completar as
investigações e prolatar de uma vez as “sentenças condenatórias”, do que gastar
energias em inquéritos e processos quase mumificados nos escaninhos da lentidão
policial e judiciária. Tudo fica mais prático, cômodo e dinâmico, nesta ótica,
com a delação premiada, vista por alguns como excelente via purgatória da mora
histórica do Estado brasileiro em promover efetiva e célere Justiça aos seus
cidadãos.
A coisa vem então funcionando mais ou menos desse jeito: um
sujeito torna-se suspeito e é preso preventivamente ou provisoriamente. Na
prisão, é pressionado e chantageado e então torna-se réu confesso. Para poder
sair da prisão, ele é induzido a negociar com as autoridades constituídas e
“adere” à delação premiada, dando um depoimento que deveria ser sigiloso a
estas autoridades, delatando supostos cúmplices e associados de sua suposta
atividade ilícita. Partes deste depoimento, a seguir, “vazam”, misteriosamente,
para a imprensa (por obra e graça da própria autoridade ou de sabe-se lá
quem...).
Na seqüência, após pinçar e selecionar trechos da delação, a
imprensa imediatamente os publica, na forma de manchetes condenatórias
sensacionalistas, atingindo diretamente certas pessoas que teriam sido
supostamente citadas e delatadas no depoimento que, ao fim e ao cabo, deveria
ser “sigiloso”. Alguns dos delatados, face à repercussão destas notícias, são
posteriormente presos pela mesma autoridade policial, em prisões nas quais
sobram espalhafato e pirotecnia, pois são prisões realizadas na forma de reality
show, com o devido acompanhamento da mesma imprensa que antes publicou os
trechos da delação. Durante o tempo necessário para a tramitação do remédio
legal de seus habeas corpus, estas pessoas presas passam também a
ser pressionadas para delatarem, de forma premiada. Porém, mais tarde, acabam
liberadas da prisão, pois o STF, por unanimidade, decreta a ilegalidade das
prisões nos habeas. Porém, quando o STF corrige a falha do sistema
que gera estas prisões ilegais, outra grande quantidade de delatados já está
presa, por conta de novas delações, e assim por diante. A imprensa fica
duplamente feliz, porque tem o seu estoque de escândalos políticos e
empresariais renovado a cada par de dias e pode arruinar a biografia de quem
representar obstáculo aos seus interesses corporativos e empresariais. E a
população é refém de um bombardeio diário e incessante de notícias sobre
escândalos, um depois do outro. E sempre mais adiante, a mesma imprensa vai
modificando o escândalo da vez, pois, na realidade, não era "bem assim 'ou
"bem assado" o que antes havia divulgado, em razão de novas delações
que vão surgindo no horizonte e modificando as estórias. E estas delações vão
sendo capitaneadas por certos agentes públicos que parecem envaidecidos pela
notoriedade momentânea de holofotes e flashes. Vivemos uma espécie de seriado
policialesco apresentado em capítulos diários pela imprensa, cada dia com novos
fatos e novos personagens surgindo. E muitas estórias simplesmente saem de
cena, quando as investigações chegam aos calcanhares de pessoas poderosas que
são protegidas pela imprensa, como ocorreu no mega-escândalo Carlinhos
Cachoeira, simplesmente arquivado, de súbito, pela mídia. Este é o grau de
qualidade e maturidade que atingiu a civilização brasileira, no
“aperfeiçoamento” do seu Estado Democrático de Direito.
Chegou-se ao requinte máximo da distorção no uso do novel
instituto, quando uma revista de circulação nacional, de assumida linha
partidária, na ante-véspera das eleições mais importantes do país, antecipou
sua edição semanal em dois dias para publicar matéria de capa citando a “fala”
de um delator premiado que, na verdade, soube-se bem mais tarde, nunca fora
pronunciada no depoimento “sigiloso” deste delator. E, justamente, por ser um
depoimento dito “sigiloso” e por ser o delator premiado alguém evidentemente desacreditado,
que assumiu a condição de réu confesso, ficou o dito (e publicado) pelo
não-dito (e não-publicado), literalmente e convenientemente. Tentou-se, com
isso, o uso mais ousado e perigoso dentre todas as várias possibilidades de
distorções franqueadas por este controverso instituto da delação premiada:
enganar os eleitores de um país inteiro e fraudar uma eleição presidencial.
Ufa!
Ou seja: o instituto da delação premiada, que já é altamente
polêmico e controverso, por si mesmo, nos países mais sérios que o nosso que o
utilizam ao redor do mundo, ganha, aqui no Brasil, sua versão mais picante,
mais carnavalesca e também mais perigosa de todas, com selo ISO-9000 e nota 10
no quesito “distorções institucionais”.
Fico feliz em ver que os mais experientes e inteligentes juristas
do país começam, finalmente, a emergir das sombras de um certo silêncio
obsequioso que parecia pairar sobre o tema, iniciando por questionarem o
uso indiscriminado desta verdadeira anomalia jurídica que foi introduzida de
sopetão em nosso país. Uma anomalia que permite que réus confessos adquiram
poderes ilimitados, superiores ao de juiz, tornando-se astros capazes de impor
condenações morais públicas, na prática, irrecorríveis, sobre quem queiram
condenar moralmente. Um poder que lhes franquia inclusive a prática da vindita,
tudo isso em troca de “prêmios” que lhe são concedidos por agentes públicos
agindo em nome do Estado e da sociedade brasileira. Evidentemente, não
estão aí computadas as outras negociações entre os próprios efetivos
criminosos, no acobertamento de crimes e de vestígios. Pois ninguém é mais
ingênuo de não crer que outras tantas negociações correm em paralelo a estas
delações premiadas oficiais. E tudo isso só funciona com este grau de
sofisticação porque o sistema da delação é amplificado pela participação sempre
oportunista, alarmista e seletiva da imprensa privada nacional. Observa-se que
a nossa imprensa é sempre altamente seletiva quanto aos trechos ditos vazados
das supostas delações premiadas "sigilosas", arruinando as biografias
de muitas pessoas que, “coincidentemente”, são nefastas aos interesses
empresariais das mesmas corporações de comunicação social. Ou seja, aqui
no Brasil, a delação premiada criou um clima de total selvageria policial e
histeria jurídica, com delatores condenando pessoas e a imprensa aplicando-lhes
a pena de extermínio moral. Um ambiente no qual o sentido de Justiça resultou
opaco e pouco identificável em meio à fanfarra e à fumaceira levantada.
Não se pode admitir que a delação premiada imponha o sobrestamento
ou até a substituição do trabalho das autoridades públicas constituídas,
encarregadas da formação da culpa por via do inquérito, do indiciamento, da
instauração do processo penal e das demais fases processuais até a condenação
ou absolvição dos réus. Aliás, conforme prevê a Constituição. A questão que
então emerge de tudo isso é se o instituto da delação premiada está,
efetivamente, qualificando o nosso sistema de justiça. Penso que ele causa um
efeito contrário: faz regredir nossa sociedade a um tempo de indiscriminado e
selvagem faroeste policial e judiciário, alimentando um mundo de faz-de-conta
em que os agentes públicos do Estado fazem-de-conta que cumprem o seu trabalho,
para o qual são muito bem remunerados, e a sociedade faz-de-conta que tem a
proteção de um sistema eficiente de Justiça.