sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

OS RISCOS DA DELAÇÃO PREMIADA, ESPECIALMENTE NA SUA PERIGOSA VERSÃO À BRASILEIRA -´por Rogério Guimarães Oliveira - advogado


Venho alertando, em vários fóruns de discussões jurídicas, para a aberração em que converteu-se, aqui no Brasil, o polêmico instituto chamado “delação premiada”.  Através dele, um suspeito, assumindo-se réu confesso, negocia com agentes e autoridades públicas a delação de outras pessoas que, segundo o delator, teriam incorrido em supostas práticas ilegais. Faz isso em troca da garantia de benefícios futuros, quando do seu indiciamento ou denúncia. O referido instituto é polêmico em todos os países em que foi adotado, notadamente nos EUA, onde o poder de barganhar com o suspeito é exclusivo do Ministério Público. Discute-se lá qual o tipo, tamanho e limites do poder que a sociedade pode ou deve outorgar a um agente público para fazer o contrário do que é pago para fazer, ou seja, livrar alguém que é culpado confesso de responder pelos seus crimes.

 

Aqui no Brasil, o instituto chegou com furor, na forma de uma grande apoteose. Tudo agora, no mundo penal, gira em torno de delações premiadas. Foi-se, aqui, muito além do que o instituto da delação premiada pretendia propiciar, em sua origem. No Brasil, delegados de polícia e talvez até investigadores estão autorizados a abrirem “mesas de negociação” com acusados de crimes que se encontrem presos, preventiva ou provisoriamente. E, justamente, por estarem presos a um sistema prisional considerado de Idade Média, conforme recente posicionamento da justiça italiana, os delatores cedem às coações e chantagens de delegados e policiais para que delatem outras pessoas em troca, simplesmente, da liberdade ou da possibilidade de serem excluídos de indiciamentos ou denúncias futuras. Para a autoridade policial, com certeza, é muito mais fácil e cômodo permanecer no conforto de delegacias e esperar que o suspeito preso aceite “negociar” delações do que sair a campo, atrás da coleta de provas materiais concretas contra outros suspeitos. Nestas condições, os delatores são induzidos a incriminar quem eles queiram. E suas delações, malgrado a consistência e veracidade sejam altamente duvidosas, adquirem, no Brasil, “ares” de verdadeiras sentenças condenatórias dos delatados, à margem de qualquer processo investigatório ou penal.

 

Finalmente, matéria publicada no jornal Consultor Jurídico vem jogar luzes sobre este nebuloso assunto, após descobrir-se que um criminoso que negociou sua própria imunidade com o Ministério Público dos EUA, numa delação premiada, delatou como criminosa uma mulher que, descobriu-se agora, era inocente. Ela passou 12 anos presa, condenada com base na exata delação premiada do bandido, fazendo soar o alarme quanto à efetividade do instituto para apressar a conclusão de inquéritos e resolver processos emperrados por falta de provas. 

 


 

Se lá, nos EUA, está ocorrendo este debate, o que se pode esperar que ocorra aqui no Brasil, onde quase tudo, simplesmente, adquire dimensões surrealistas?  Além de ser utilizada de uma forma distorcida, a delação premiada à moda brasileira oferece enormes riscos à segurança judiciária, porque está sendo utilizada quase que em substituição à atuação dos agentes públicos do Estado, invertendo as posições entre inocentes e culpados e outorgando poderes quase ilimitados a quem é réu confesso.  Aqui, em nossas paragens, o instituto ganhou ingredientes os mais incríveis, tipicamente brasileiros. O ponto saiu, como sempre, totalmente fora da curva, pois, dada a lerdeza e a incompetência notórias das estruturas oficiais existentes (polícias, MPs e Poder Judiciário) em fazer seus respectivos ofícios de investigar, formar a culpa, abrir o processo penal, instruí-lo, e, por fim, julgar, condenando ou absolvendo os réus, o instituto da delação premiada tornou-se uma espécie de resposta rápida à sociedade, um fast-food judiciário, uma ligação-direta da justiça, um meio de alívio para delegados, promotores e magistrados pressionados pelas cobranças em razão da marcha-de-tartaruga de inquéritos e processos. É mais fácil apresentar logo, um “culpado delatado”, deixando para a imprensa nacional fazer o trabalho de completar as investigações e prolatar de uma vez as “sentenças condenatórias”, do que gastar energias em inquéritos e processos quase mumificados nos escaninhos da lentidão policial e judiciária. Tudo fica mais prático, cômodo e dinâmico, nesta ótica, com a delação premiada, vista por alguns como excelente via purgatória da mora histórica do Estado brasileiro em promover efetiva e célere Justiça aos seus cidadãos.

 

A coisa vem então funcionando mais ou menos desse jeito: um sujeito torna-se suspeito e é preso preventivamente ou provisoriamente. Na prisão, é pressionado e chantageado e então torna-se réu confesso. Para poder sair da prisão, ele é induzido a negociar com as autoridades constituídas e “adere” à delação premiada, dando um depoimento que deveria ser sigiloso a estas autoridades, delatando supostos cúmplices e associados de sua suposta atividade ilícita. Partes deste depoimento, a seguir, “vazam”, misteriosamente, para a imprensa (por obra e graça da própria autoridade ou de sabe-se lá quem...).

 

Na seqüência, após pinçar e selecionar trechos da delação, a imprensa imediatamente os publica, na forma de manchetes condenatórias sensacionalistas, atingindo diretamente certas pessoas que teriam sido supostamente citadas e delatadas no depoimento que, ao fim e ao cabo, deveria ser “sigiloso”. Alguns dos delatados, face à repercussão destas notícias, são posteriormente presos pela mesma autoridade policial, em prisões nas quais sobram espalhafato e pirotecnia, pois são prisões realizadas na forma de reality show, com o devido acompanhamento da mesma imprensa que antes publicou os trechos da delação. Durante o tempo necessário para a tramitação do remédio legal de seus habeas corpus, estas pessoas presas passam também a ser pressionadas para delatarem, de forma premiada. Porém, mais tarde, acabam liberadas da prisão, pois o STF, por unanimidade, decreta a ilegalidade das prisões nos habeas. Porém, quando o STF corrige a falha do sistema que gera estas prisões ilegais, outra grande quantidade de delatados já está presa, por conta de novas delações, e assim por diante. A imprensa fica duplamente feliz, porque tem o seu estoque de escândalos políticos e empresariais renovado a cada par de dias e pode arruinar a biografia de quem representar obstáculo aos seus interesses corporativos e empresariais. E a população é refém de um bombardeio diário e incessante de notícias sobre escândalos, um depois do outro. E sempre mais adiante, a mesma imprensa vai modificando o escândalo da vez, pois, na realidade, não era "bem assim 'ou "bem assado" o que antes havia divulgado, em razão de novas delações que vão surgindo no horizonte e modificando as estórias. E estas delações vão sendo capitaneadas por certos agentes públicos que parecem envaidecidos pela notoriedade momentânea de holofotes e flashes. Vivemos uma espécie de seriado policialesco apresentado em capítulos diários pela imprensa, cada dia com novos fatos e novos personagens surgindo. E muitas estórias simplesmente saem de cena, quando as investigações chegam aos calcanhares de pessoas poderosas que são protegidas pela imprensa, como ocorreu no mega-escândalo Carlinhos Cachoeira, simplesmente arquivado, de súbito, pela mídia. Este é o grau de qualidade e maturidade que atingiu a civilização brasileira, no “aperfeiçoamento” do seu Estado Democrático de Direito.

 

Chegou-se ao requinte máximo da distorção no uso do novel instituto, quando uma revista de circulação nacional, de assumida linha partidária, na ante-véspera das eleições mais importantes do país, antecipou sua edição semanal em dois dias para publicar matéria de capa citando a “fala” de um delator premiado que, na verdade, soube-se bem mais tarde, nunca fora pronunciada no depoimento “sigiloso” deste delator. E, justamente, por ser um depoimento dito “sigiloso” e por ser o delator premiado alguém evidentemente desacreditado, que assumiu a condição de réu confesso, ficou o dito (e publicado) pelo não-dito (e não-publicado), literalmente e convenientemente. Tentou-se, com isso, o uso mais ousado e perigoso dentre todas as várias possibilidades de distorções franqueadas por este controverso instituto da delação premiada: enganar os eleitores de um país inteiro e fraudar uma eleição presidencial. Ufa!

 

Ou seja:  o instituto da delação premiada, que já é altamente polêmico e controverso, por si mesmo, nos países mais sérios que o nosso que o utilizam ao redor do mundo, ganha, aqui no Brasil, sua versão mais picante, mais carnavalesca e também mais perigosa de todas, com selo ISO-9000 e nota 10 no quesito “distorções institucionais”.

 

Fico feliz em ver que os mais experientes e inteligentes juristas do país começam, finalmente, a emergir das sombras de um certo silêncio obsequioso que parecia pairar sobre o tema, iniciando por questionarem o uso indiscriminado desta verdadeira anomalia jurídica que foi introduzida de sopetão em nosso país. Uma anomalia que permite que réus confessos adquiram poderes ilimitados, superiores ao de juiz, tornando-se astros capazes de impor condenações morais públicas, na prática, irrecorríveis, sobre quem queiram condenar moralmente. Um poder que lhes franquia inclusive a prática da vindita, tudo isso em troca de “prêmios” que lhe são concedidos por agentes públicos agindo em nome do Estado e da sociedade brasileira.  Evidentemente, não estão aí computadas as outras negociações entre os próprios efetivos criminosos, no acobertamento de crimes e de vestígios. Pois ninguém é mais ingênuo de não crer que outras tantas negociações correm em paralelo a estas delações premiadas oficiais. E tudo isso só funciona com este grau de sofisticação porque o sistema da delação é amplificado pela participação sempre oportunista, alarmista e seletiva da imprensa privada nacional. Observa-se que a nossa imprensa é sempre altamente seletiva quanto aos trechos ditos vazados das supostas delações premiadas "sigilosas", arruinando as biografias de muitas pessoas que, “coincidentemente”, são nefastas aos interesses empresariais das mesmas corporações de comunicação social.  Ou seja, aqui no Brasil, a delação premiada criou um clima de total selvageria policial e histeria jurídica, com delatores condenando pessoas e a imprensa aplicando-lhes a pena de extermínio moral. Um ambiente no qual o sentido de Justiça resultou opaco e pouco identificável em meio à fanfarra e à fumaceira levantada.

 

Não se pode admitir que a delação premiada imponha o sobrestamento ou até a substituição do trabalho das autoridades públicas constituídas, encarregadas da formação da culpa por via do inquérito, do indiciamento, da instauração do processo penal e das demais fases processuais até a condenação ou absolvição dos réus. Aliás, conforme prevê a Constituição. A questão que então emerge de tudo isso é se o instituto da delação premiada está, efetivamente, qualificando o nosso sistema de justiça. Penso que ele causa um efeito contrário: faz regredir nossa sociedade a um tempo de indiscriminado e selvagem faroeste policial e judiciário, alimentando um mundo de faz-de-conta em que os agentes públicos do Estado fazem-de-conta que cumprem o seu trabalho, para o qual são muito bem remunerados, e a sociedade faz-de-conta que tem a proteção de um sistema eficiente de Justiça.