sábado, 22 de fevereiro de 2014

O JOVEM DES. NEWTON FABRICIO E SEU DISCURSO HISTÓRICO DE POSSE NO TJRS


 



              Antes de iniciar o discurso, gostaria de deixar claro a todos que este é um momento de profunda emoção na minha vida. Por isso, por favor, me entendam e relevem o fato de que eu não vou fazer a saudação protocolar. Não por desconsideração a ninguém, que isso jamais faria; dou a minha palavra a todos que o motivo é outro. E eu sempre cumpri com a minha palavra. A razão, o motivo, é a minha profunda emoção. Creio que a única forma de conseguir fazer o curso do discurso seguir do início ao fim é este: deixar a emoção singrar os descaminhos do coração; assim como os rios correm para o mar; assim como a vida sangra em direção ao seu fim, por vezes de forma triste, injusta, dura, cruel e desigual.

 

Por isso, não posso seguir o formalismo do protocolo; caso o fizesse, os incertos e revoltos caminhos dos sentimentos poderiam trair a minha boa intenção. Mas deixo, aqui, um registro: agradeço a cortesia do gesto do Presidente Aquino, ontem de manhã. E o cumprimento pela agilidade que imprimiu à Administração, o que já resulta perceptível, poucos dias após a sua posse. E assim fica claro que a ausência de saudação protocolar não é descortesia à Presidência, nem a ninguém; apenas quero deixar fluir a voz do coração.

 

Meu pai e minha mãe: agradeço a ambos por este momento especial da minha vida; Rafael, meu filho, meu orgulho; Anelise, minha mulher; meus amigos; meu Tribunal; meus irmãos de toga:

 

Foi no início de 1984. Poucos dias depois da minha formatura. Eu caminhava ao lado da Praça da Matriz, acompanhado de um amigo de meu pai. Ele parou, apontou o dedo para um prédio e disse:

 

- Um dia, eu quero te ver ali.

 

Eu apontei para o prédio do outro lado da Praça e respondi:

 

- Um dia, eu quero estar lá.

 

Ele apontou para a Assembleia Legislativa; eu, para o Tribunal de Justiça.

 

Passaram mais de 28 anos. Parece que foi ontem. Mas não foi. Faz tempo. Muito tempo. Esse dia chegou. É hoje. No peito, um sentimento e uma emoção que não consigo transformar em palavras. Elas não existem. São insuficientes para traduzir a história da minha vida. De tudo o que eu acredito. Da profunda convicção que sempre tive nos princípios, mesmo antes de saber o que eram e o que significam, fora e além de nós. Porque eles não existem apenas na letra fria da Lei. Eles existem dentro de mim. Para mim e para o outro. Para cada um de nós. Para o pipoqueiro da esquina defronte ao Tribunal; e para o negrinho que pede esmola do outro lado da rua. Isso é um princípio. Simples e verdadeiro. Mas sei que, às vezes, é difícil demonstrar uma simples verdade. Porque há um momento da vida das instituições em que a maioria não quer ver a verdade, por mais simples que seja. Mas é assim; queiramos ou não, é assim; a História demonstra. Há, porém, outra circunstância, ainda, a dificultar a compreensão do que pretendo transmitir: a minha profunda emoção.

 

Como, então, dizer ao meu filho, à minha mulher, aos meus amigos, ao meu Tribunal, aos meus irmãos de toga, o que trago no peito? Talvez isso só seja possível se admitir que dificilmente vou conseguir. Mas vou tentar. Tentar eu vou. E, lutando para conseguir, talvez consiga. Mais ou menos como a história da minha vida. Com a diferença de que sempre soube que iria conseguir tudo aquilo pelo qual lutava, que sempre soube que iria realizar os meus sonhos, que isso ninguém iria me tirar. Não importa o tempo que demorasse. O que importa o tempo para quem é movido pelos sonhos? Por um ideal? Pelo que acredita? Pela sua verdade? O tempo, talvez, sequer exista, embora os fios brancos da barba e o espelho insistam em dizer que sim. Mas hoje não sei. Não sei se vou conseguir dizer ao meu filho, à minha mulher, aos meus amigos, ao meu Tribunal, aos meus irmãos de toga, reitero, o que trago no lado esquerdo do peito, aqui dentro, pulsando e fluindo, porque assim é a vida e a voz do coração. Por um poderoso motivo, não sei. Por quê, afinal? Porque a emoção, o sentimento, pela primeira vez na minha vida, talvez superem a razão que sempre predominou na minha caminhada. Sempre. O motivo? Porque há uma cadeira vazia no Tribunal. A cadeira onde o meu pai devia estar sentado, com os olhos brilhando de orgulho, e o grosso bigode de gaúcho da Bossoroca talvez tremendo de emoção. Se a vida fosse realmente justa, o homem de memória mais brilhante que já existiu poderia, talvez, estar perdendo a vida - pois um dia ela terminará para todos nós -, mas não a memória, onde mais brilhou. Mas a vida nem sempre é justa; e é preciso saber levar, ao invés de ser levado pela emoção.

 

Em 399 antes de Cristo, um homem disse estas palavras perante um Tribunal:

 

"Concedei-me, pois, também a mim não ter de cuidar a forma do discurso; seja ela boa ou má, pouco importa: julgai, pelo contrário, com atenção, se aquilo que digo é certo ou não. Bem feitas as contas, parece-me que vos peço uma coisa justa, porque o dever do juiz é atentar na justiça; o do orador, o de dizer a verdade."

 

Esse homem era Sócrates. E com as suas palavras, eu inicio o meu discurso, como juiz e como orador.

 

Nada sei de Filosofia. Mas algo eu aprendi lendo sobre a vida do maior filósofo da Humanidade. O que eu aprendi? É que vale a pena dedicar a própria vida à defesa de tudo o que acreditamos. De todo e qualquer princípio de vida que esteja dentro de nós. De um princípio que constitua a nossa própria essência. De um princípio que esteja na nossa alma, na nossa mente, no nosso coração. Isso eu aprendi lendo sobre a vida de Sócrates. Mas, talvez, só tenha aprendido porque essa profunda verdade estava, antes, dentro de mim.

 

Mas, enfim, em que Sócrates acreditava? Posso estar errado; afinal, nada sei de Filosofia. Porém, o que penso é que ele acreditava na busca da Verdade. Não de qualquer uma. Mas a que está dentro da alma de cada um de nós. No mais fundo e no mais profundo de cada ser humano. E o que é que está lá, na essência de cada homem e de cada mulher que exista ou que já tenha existido na História da Humanidade? Bueno. Essa resposta eu sei: é o que nos iguala. É o princípio da igualdade.

 

Vamos falar do que é isso, então. Do princípio da igualdade, de que tanto se fala e pouco se aplica ultimamente. Mas não vamos falar com a linguagem jurídica que nos afasta da compreensão de quem não passou pelos bancos da Faculdade de Direito. Vamos falar de forma que o pipoqueiro da esquina, do outro lado da rua, defronte ao Tribunal, nos entenda. Vamos falar de maneira que ele nos olhe e nos compreenda; que ele não nos veja como uns capa pretas que falam de coisas que ele jamais vai conseguir entender. Porque só se falarmos de forma que ele nos compreenda é que a Justiça será humana; e, assim, será justa.

 

Pois bem.

 

O pipoqueiro olha para o Tribunal, do outro lado da rua; mas não vê só o Tribunal. Antes ele vê, na sinaleira, um negrinho pedindo esmola a cada carro que passa. Pergunto, então: qual a esperança daquele negrinho? Qual a esperança que ele tem, no fundo da sua alma, de ser cuidado e protegido pelo Estado? A esperança daquele negrinho é a mesma da mãe que tem um filho preso injustamente; é a mesma do homem desempregado, que busca um trabalho para sustentar a sua família; é a mesma do miserável que passa fome e dorme, durante frias madrugadas, nos bancos da praça defronte ao Tribunal de Justiça; é a mesma do pequeno empresário que luta contra a burocracia do Estado e a imensa e injusta carga fiscal para manter o seu negócio, preservando empregos e evitando a falência; é a mesma da viúva que chora, de madrugada, baixinho, e do pobre órfão que chora ainda mais. Todos eles, pobres, miseráveis e remediados, têm a mesma esperança, o mesmo sonho, embora não saibam: eles querem, todos, apenas, ser tratados pelo Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário - da mesma forma, com a mesma igualdade que merecem os políticos do Planalto Central. Não mais; não menos; o mesmo. Isso é igualdade, isso é a esperança e o sonho da igualdade que a Constituição da República promete, e cabe a nós fazer cumprir.

 

Vamos falar um pouco mais sobre o princípio da igualdade. Mas vamos ter que recuar um pouco e falar sobre coisas que o pipoqueiro da esquina não viu - porque aconteceram há mais de 200 anos - e provavelmente não saiba. Vamos falar sobre os motivos, as razões e as causas que determinaram o surgimento da Revolução Francesa. Não se preocupem. São apenas dois minutos, se tanto.

 

A vida era profundamente injusta na França até 1789. O povo passava fome. Os remediados pagavam impostos, cada vez mais altos, para o Rei desperdiçar junto à nobreza, em gastanças sem fim. Era preciso dar um basta. Era impossível continuar assim. Por isso, o povo foi para a rua exigir que aquele mundo mudasse. E deu no que deu: quase 3 mil pessoas decapitadas só em Paris. Uma baita mortandade. Um banho de sangue. Mas de tudo fica um pouco, conforme lembra o poeta: o mundo mudou. Toda aquela gente que pensava que estava acima da Lei, que desconhecia o princípio da igualdade - e essa gente sempre existe -, todos eles tiveram que aprender uma dura lição ensinada pelo povo nas ruas. Todos: reis, rainhas, príncipes, duques, arquiduques, condes, viscondes, todos esses nobres se tornaram, em pouquíssimo espaço de tempo, iguais aos plebeus, que tanto exploraram e humilharam, durante séculos e séculos. Mas não vamos dizer amém. O dono do castelo se tornou igual ao servo da gleba. Nem mais, nem menos; exatamente igual. O Rei se tornou igual ao verdugo. E por não entender isso, perdeu, literalmente, a cabeça, para o delírio da multidão. É triste constatar que o tempo passa, pero las cosas no cambian nada...

 

Mas toda essa matança de homens e mulheres, de velhos e jovens - e até de crianças, pois os inocentes sempre morrem antes - não foi em vão. Porque o art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, diz exatamente isso: "Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum." E não é por acaso que é o primeiro artigo da primeira Declaração dos Direitos do Homem na Humanidade. Não é por acaso. Por isso, é preciso honrar a todos eles, a todos os que morreram na defesa do princípio da igualdade. Mas honrar onde e como, afinal? Nas nossas decisões, nas decisões judiciais, quaisquer que sejam, administrativas ou jurisdicionais, também aqui sem distinção. Para que eles todos não tenham morrido em vão. Para que o pipoqueiro da esquina do Tribunal veja que as coisas cambiam, sim. Para que a esperança do negrinho que pede esmola na outra esquina não morra; para que a esperança da mãe que tem o filho preso injustamente exista e continue; para que o miserável que dorme, em frias madrugadas de minuano e chuva, nos bancos da praça defronte ao Tribunal de Justiça, teime em continuar acreditando que o Estado ainda vai cuidar dele, como deveria cuidar - e não cuida –; para a esperança do órfão e da viúva. Porque assim deve ser a Justiça; é o que esperam de nós: que ela seja igual para todos. É a nossa sina, destino e caminho. Não há outro. É o único caminho do juiz. E por tudo isso, devemos dar o exemplo aqui mesmo, dentro da Casa da Justiça, que para mim sempre foi e será, como ideal, a minha Catedral.

 

Mas, afinal, o que é um ideal? Um castelhano, certa vez, explicou, em palavras incomparáveis que nunca esqueci:

 

"É fogo sagrado, capaz de temperá-lo para grandes ações./Cuida dele; se tu deixares que se apague, jamais se reacenderá./E se morre em ti, tu ficarás inerte: fria bazófia humana./Tu só vives por essa partícula de sonho que te põe acima do real./Ela é a flor-de-lis de teu brasão, o penacho de teu temperamento."

 

Todo verdadeiro juiz tem o princípio da igualdade dentro do coração - e dele não precisa ser lembrado. Hammurabi, simbolicamente o primeiro juiz da História da Humanidade, sabia disso; tinha o princípio dentro do lado esquerdo do peito. Porque não foi por acaso que ele escreveu estas palavras, mais de mil anos antes de Sócrates: "O Direito existe para punir o mau e o perverso; para proteger os órfãos e as viúvas; para que a Justiça, como o sol, resplandeça em todo o país" (de 1792 a 1750 antes de Cristo viveu o Príncipe Hammurabi). Mais de mil anos antes de Sócrates, essas palavras foram escritas na pedra e ecoam no peito de todo verdadeiro juiz - e há quem ainda não tenha entendido o que elas significam.

 

Há alguns anos, estive no Museu do Louvre, em Paris. Enquanto turistas, em fila sem fim, se acotovelam e se empurravam para tirar uma foto da Monalisa e depois sair correndo até outro quadro, onde tiravam novas fotos, para depois perguntar: "- De quem é?", eu levei a minha família para o lado oposto, exatamente no outro canto do Museu. E lá mostrei ao meu filho uma pedra, uma pedra negra. A pedra onde Hammurabi escreveu as suas palavras de esperança na Justiça, a Pedra da Lei. E ali fiquei um bom tempo, entre perplexo e embevecido - quase pateta, pra falar a verdade -, olhando aquela baita pedra da Lei. E tão distraído estava que não entendi quando uma mulher grita, sucessivamente, em francês, inglês, alemão e italiano algumas palavras. Quando ela gritou em castelhano e com todo mundo me olhando, desconfiei que aquele gritedo todo era pra mim. Só então me dei me dei conta de que tinha pousado a mão na pedra de Hammurabi, monumento histórico preservado há milênios. Um baita fiasco. A minha mulher, roxa de vergonha. O meu filho, se encostou numa pilastra e quase morreu de tanto rir. Tudo bem, foi um fiasco, um baita fiasco. Mas, fiquei pensando:

 

- Eu botei a mão na pedra de Hammurabi. No Código de Hammurabi. Eu e Hammurabi botamos a mão na mesma pedra. Eu botei a mão em um dos primeiros Códigos de Leis da Humanidade. E fiz isso sem pensar, porque estava dentro dele. Em mais de 3 mil e 500 anos, quantos homens fizeram isso?

 

Em 1945, 24 séculos depois de Sócrates e 37 séculos depois de Hammurabi, quando termina a Segunda Guerra Mundial, quando ainda fumegavam os canhões e o sangue corria das feridas dos combatentes e dos civis - e das mulheres, dos velhos e das crianças -, dois poetas escreveram palavras candentes sobre o que viam fora de si e sentiam dentro de si.

 

Carlos Drummond de Andrade lançou o seu olhar sobre a Humanidade sem rumo, o que fez chorar a sua alma e, então, botou no papel em branco à sua frente:

 

"Esse é tempo de partido,

tempo de homens partidos.


A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.

As leis não bastam, os lírios

não nascem da lei. Meu nome é tumulto,

e escreve-se na pedra.”

 

O chileno Pablo Neruda, por sua vez, embora indignado com o que via e sentia quanto a toda aquela matança inútil, termina o seu canto poético com uma mensagem de esperança sobre os tempos que viriam:

 

“Algo acontece no mundo, um sopro que antes não sentíamos entre as ondas de pólvora.

 

Este é o canto do que passa e do que será.

Este é o canto da chuva que caiu sobre o campo como uma imensa lágrima de sangue e chumbo.

….

eu quis cantar para vós todos, para toda a terra, este canto de palavras obscuras, para que sejamos dignos da luz que chega.”

 

Cabe a cada juiz; a cada juíza, em cada decisão que profere varando a madrugada, em silêncio, enquanto a cidade dorme, ou na solidão do seu gabinete, da sua própria Catedral, em cada rincão dos pagos do Rio Grande, decidir se vamos mostrar ao pipoqueiro da esquina do Tribunal que as coisas cambiam, sim, pois só depende de nós, das nossas decisões, das nossas atitudes - ou das nossas omissões -, se vamos deixar que a esperança do negrinho morra, enquanto segue pedindo esmola. Porque isso depende de cada um de nós. Cabe a cada um de nós decidir se as leis bastam, ou não; se vale o que está escrito na Constituição da República, ou não; se seremos dignos da luz que chega, ou não.

 

A música que acompanhou a minha entrada neste Tribunal, nesta Casa da Justiça, na minha Catedral, sacudiu o país de esperança nos anos 60. Tornou-se um hino. Foi proibida e censurada. Calado e perseguido seu autor. No entanto, até hoje todos se emocionam quando a ouvem, mesmo que fossem crianças à época, ou sequer tivessem nascido. Por quê? Porque a canção "Pra não dizer que não falei das flores" tem estes versos: "Caminhando e cantando/e seguindo a canção/Somos todos iguais/braços dados ou não".

 

Cabe a nós, juízes, decidir se vamos caminhar ou ficar estáticos, vendo as injustiças se perpetuarem; se vamos caminhar juntos, ou não; se vamos mudar as coisas ou se vamos deixar que tudo continue igual como está; se vamos dizer não ao autoritarismo ou se vamos deixar que o gerontocracia perdure; se seremos dignos da luz que chega, ou não.

 

Muito se fala da necessidade de democratizar a Justiça. Há poucos dias, a Ajuris sugeriu a ideia da eleição direta para a Presidência do Tribunal. Quem votaria? Todos os juízes. Mas apenas os juízes. Seria mais ou menos como na Grécia Antiga; uns votavam; outros, não. Mulheres, não; escravos, não. Agora, parece que seria assim: os juízes votariam; os outros, não.

 

Se olharmos pela janela, vamos ver o pipoqueiro balançando a cabeça... Estará perdendo a esperança o pobre pipoqueiro?

 

As coisas cambiam, ou não?

 

Mas vamos pensar mais um pouco. Faz bem refletir, ainda que pouco. Democracia, então, para os juízes, tudo bem. Mas, eleição, só para a Presidência do Tribunal. Pergunto, então: para os componentes da Comissão de Promoções, não? Por favor, poderia alguém me explicar que democracia é essa? O Presidente da Comissão é o 1º Vice-Presidente do Tribunal; outro componente é o Corregedor-Geral. Ambos foram escolhidos mediante eleição. Têm legitimidade. Não precisam de nova eleição. Pergunto: e o outro componente? Não, esse, não. Não precisa de eleição. E o suplente? Não, esse, não, não precisa de eleição. Jamais precisará de nova eleição. Afinal, foi Presidente. Mandará eternamente; ou não? Mas qual o democrático critério? É o "direito" dos dois mais antigos membros do Tribunal...? Ora, por favor, isso é um Tribunal; o tempo do "direito" dos mais antigos mandarem é do tempo dos conselhos tribais, lá nos primórdios da Antiguidade. E é exatamente por isso que levam mais de ano e meio para conseguir realizar uma simples promoção. Pior: que ora vale; ora, não. Depende da liminar... Ou não? Ou ainda não? Na verdade, ainda não. Por quê? Porque o Conselhão ainda pode anular essa promoção; e este discurso poderá ser repetido mais adiante de novo; ou não? E ter esta posse de hoje anulada, como a anterior foi suspensa, quando jamais esteve o meu caso em concreto em questão...

 

Certa vez, disse Aristóteles: "A Filosofia nasceu do espanto".

 

Sem dúvida, me falta inteligência para me tornar filósofo; porque espanto me sobra...

 

Mas vamos pensar um pouco mais. Não muito. Apenas um pouco. Pergunto, então: por que razão a tal de promoção levou mais de ano e meio para ser realizada? Cada um tem a sua resposta; afinal, ela sopra com o vento. Mas a minha resposta é esta: porque nos primórdios da Antiguidade, à época dos conselhos tribais, não havia arguição de inconstitucionalidade, nem necessidade de fundamentar a decisão - o que hoje se exige, até mesmo em matéria administrativa... Ou ainda não? Nos pagos do Rio Grande, não? É por isso que quem manda e desmanda no Tribunal, por ser um dos mais antigos, acredita que pode desconsiderar uma arguição de inconstitucionalidade, fazendo de conta que ela não existe. Ela existe, sim; e quando existe, o Tribunal tem que enfrentar e fundamentar. Ou não? Isso não é uma exigência da Constituição da República, sob pena de nulidade da decisão? Por tudo isso, o Tribunal não pode contornar uma arguição de inconstitucionalidade como se fora uma mera escolha entre dois critérios.

 

Digo de novo: um Tribunal tem que decidir conforme a Constituição - que corresponde à alma do próprio povo -, fundamentando a sua decisão. Não pode agir como se fora uma assembleia política, ou uma mera reunião de condomínio, no sossego de um dia de verão.

 

É um Tribunal; há que merecer ser chamado assim.

 

O Direito tem regras; tem normas; tem leis; tem artigos de lei.

Há limites; há normas a respeitar - e há o direito dos outros, que é igual ao meu.

Há uma Constituição a ser respeitada; respeitem-na.

 

A este passo, cabe ponderar, formulando uma pergunta: por que, afinal, tudo isso ocorreu? Qual a explicação mais profunda, sociológica, política e histórica que possa nos ajudar a entender por que razão uma simples promoção a desembargador leva mais de ano e meio para ser realizada, paralisando milhares de processos e prejudicando a vida de um número incalculável de homens, mulheres, velhos e crianças que precisam manter a esperança na Justiça e na jurisdição? Isso tudo quer entender o pobre do cidadão. Pior: ainda nem tinham tomado posse todos os desembargadores finalmente promovidos - faltava justamente a minha, que, por ironia do destino esperava a definição dos critérios de promoção desde julho de 2012, quando esse questionamento jamais disse respeito ao meu caso concreto -, e o que ocorre? A Ajuris agora - e só agora - admite que os critérios devem ser mudados, mas ainda não..; o Tribunal também admite, pois finalmente enxergou que houve inconstitucionalidades e até exceção, quando eu, que hoje tomo posse, alertara, uma semana antes da promoção, por escrito, na forma da lei, mediante arguição de inconstitucionalidade que o Tribunal não examinou, que toda essa confusão iria acontecer, porque os critérios eram e são inconstitucionais... e que a Constituição não fora respeitada, não... Mas tem mais: tanto a Ajuris quanto o Tribunal admitem que os critérios devem mudar... mas mantendo as inconstitucionalidades desta promoção... Preciso dizer mais? Paro por aqui? Ou ainda não? Admito que a rima é pobre, mas mais pobre é a pobre decisão que desrespeitou a Constituição - e sequer examinou a constitucionalidade da arguição... Será que aquela Comissão percebe que a lenta roda da História começou a andar, ou ainda não?

 

Abro um improvisado parênteses: no dia 2 de janeiro, o Presidente Aquino, por iniciativa dele, por consideração, respeito ou cortesia, me visitou na casa na praia. Eu o recebi da mesma forma: com respeito e consideração. E tomamos um chimarrão, charlando sobre coisas importantes da Justiça. Pouco depois que ele se retirou, ao cair da tarde, com um abraço, recebi o 1º Vice-Presidente Difini, a quem tinha convidado para um churrasco no dia anterior. E, durante o churrasco, falamos, naturalmente, sobre coisas importantes da Justiça. A minha tônica foi a mesma com ambos: as coisas têm que mudar. Esclareço algo importante aqui: nunca participei de grupo político, nem com um, nem com outro; de grupo político algum, nunca. Conversei com ambos, porque não faço distinção. Converso com todos. Acredito na boa intenção de todos. Reitero, a minha tônica foi a mesma com ambos: as coisas têm que mudar. Mas o que eu quero dizer com isso? O que eu quero dizer é que, na verdade, já mudaram: o Poder não é mais autoritário; é democrático, dialoga. Se não dialogar, cai do cavalo; não tem saída. O tempo é de Democracia, não de autoritarismo. Em síntese:

 

A banda já passou

a tocar diferente;

Antes autoritária,

marcial e doente;

 

Hoje, toca milonga

missioneira e

samba de carnaval.

 

Quem não entender

que o tempo, agora,

é outro, que peça

aposentadoria;

 

porque não manda

mais neste Tribunal.

E jamais na minha

Catedral.

 

O tempo mudou, o Poder, antes autoritário e doente - e mais rima não faço para não ficar muito constrangedor -, hoje se distribui de forma igual, mediante a base da Democracia, que é o diálogo. Não é de hoje que é assim; é desde a Grécia Antiga que a Democracia repousa no diálogo, não há outra forma.

Mas o que eu quero dizer é o seguinte: o diálogo com o Presidente Aquino, por iniciativa dele, o diálogo aceito pelo Vice-Presidente Difini, por iniciativa minha, mostram que o Poder é outro, já se deu conta de que tem que dialogar. O Poder não será mais exercido de forma autoritária, mudou de mãos, tanto que ambos foram eleitos por grupos políticos diferentes. O Poder hoje se divide de forma igual porque a Democracia começa a preponderar neste Tribunal.

 

Mas tem mais: em 1º de março de 2013, dez meses antes da tal de promoção, eu alertei o Presidente anterior, no gabinete da Presidência deste Tribunal, de que, se não tomasse providências para que os responsáveis pela anulação da promoção anterior ao menos se explicassem quanto aos critérios, ocorreriam fatos graves nesta promoção. Pergunto quase um ano depois: eu estava certo, ou não?

 

Digo outra coisa de improviso: no diálogo aberto que tive com o Presidente Aquino, em 2 de janeiro, contei este fato lá na casa da praia. E o alertei: se não tomar providências, se cometer o mesmo erro do Presidente anterior, vai haver nova confusão daqui a pouco, logo adiante. Eu confio que o Presidente Aquino não repetirá o erro, porque ingênuo não é, é inteligente. Mas cabe ao tempo demonstrar se o alerta foi ouvido, ou não. Eu acredito que sim.

 

De quem é a responsabilidade de todos os prejuízos causados pela Justiça aos homens, mulheres, velhos e crianças pelos processos parados, sem julgamento, durante mais de ano e meio?

 

De quem é a responsabilidade por esse fiasco institucional que durou mais de ano e meio?

 

É de quem manda e desmanda neste Tribunal e de quem não tomou providências, embora alertado - mas isso até o pipoqueiro já sabe!

 

De outro lado, tão importante quanto evidenciar e tornar clara a responsabilidade de quem a tem é apontar a respectiva solução para evitar que todos esses prejuízos voltem a ocorrer, com nova suspensão de posse e até anulação da promoção. A solução é simples: Democracia. Basta que o terceiro membro da Comissão de Promoções e seu suplente sejam eleitos, assim como o 1º Vice-Presidente e o Corregedor Geral o são. Cabe enfatizar que a Resolução 106/CNJ em nenhum momento estabelece que o membro mais antigo e seu suplente devam participar da Comissão de Promoções. Apenas que a votação inicia pelo mais antigo. De qualquer forma, se os mais antigos integrantes do Tribunal pretendem contribuir, basta candidatarem-se e serem eleitos, pelo Tribunal Pleno. Diante da gravidade dos prejuízos causados, durante mais de ano e meio, em milhares de processos a um número incalculável de homens, mulheres, velhos e crianças que precisam de Justiça, não há outra solução.

 

Mas, enfim, quais razões mais profundas podem ser encontradas para entender isso que ocorreu? Quais as causas sociológicas, políticas e históricas que explicam tudo isso?

 

Mais uma vez, cada um terá a sua resposta. De minha parte, como gosto de História, prefiro buscá-las na História do Rio Grande do Sul.

 

A minha explicação, portanto, é esta: o conflito entre chimangos e maragatos dividiu o Rio Grande em 1893, na Revolução Federalista. Marcou a alma desse povo. Feridas continuavam abertas, não cicatrizadas, muitos anos depois. Porque degola e mais degola ocorreram de ambos os lados. Gaúchos perderam a vida e o pescoço por ideias nas coxilhas. A degola é terrível; deixa marcas; não se perdoa. É como dizer ao outro, gaúcho como ele:

 

- Tua cabeça não serve pra nada. Vou cortar fora.

 

Tanto gaúcho, tanto gaudério degolado nas coxilhas, tanta violência, tanta miséria humana, isso tudo não foi por acaso. Mas, por que aconteceu tudo isso, então? Porque o autoritarismo de quem estava no poder era assim: não tinha limites. Na verdade, o autoritarismo nunca conhece limites; é o contrário do Direito, que tem limites, normas, leis e artigos de lei a serem respeitados. E o direito do outro, que é igual ao meu; e o meu direito, que é igual ao do outro? O autoritarismo não sabe disso; ou sabe, mas não quer saber; quer mandar; e desmandar; e mandar de novo. O autoritarismo é o oposto do Direito; são inconciliáveis; são opostos; é pior que cunhado e ex-cunhado quando se juntam pra abocanhar o que nunca foi seu; porque foi assim que os gaúchos se dividiram e pelearam e morreram nas coxilhas, brigando irmãos contra irmãos. Porque os donos do poder da época eram autoritários e mancharam de sangue as coxilhas do Rio Grande, porque queriam mandar e desmandar.

 

Pois bem.

 

O que eu quero dizer com tudo isso?

 

O que eu quero dizer é que o Rio Grande do Sul tem a sua História marcada pelo autoritarismo desde o tempo dos chimangos, ainda no século XIX. Desde então perdura o ranço autoritário no perfil do gaúcho e na política do Rio Grande. Porém, agora, o incrível, o impensável, o inimaginável aconteceu nos pagos da Província de São Pedro: o autoritarismo chegou ao Tribunal de Justiça, algo que nem mesmo Borges de Medeiros, que mandou e desmandou no Rio Grande por 30 anos - e que fora desembargador -, jamais ousou pensar. Nunca sonhou isso. Nem Borges sonhou uma coisa dessas.

 

Mas tem mais: o autoritarismo chegou a um ponto tão inacreditável no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que o grupo político que mandava na Administração até poucos dias atrás marcou a posse para apenas três dias depois que o Conselhão cassou a liminar que a suspendera antes. O motivo era claro: inviabilizar o mandado de segurança que o Presidente e toda a Justiça do Rio Grande do Sul tinham ciência de que eu iria ajuizar. Mais incrível ainda: eu só tomei conhecimento disso - da posse - quando o Tribunal envia um convite para a minha própria posse dali a menos de três dias. Pior ainda: o Presidente sabia que eu estava de férias no Chile, em viagem com o meu filho, uma viagem que planejara há mais de dez anos. Ele próprio deferiu o meu pedido de férias. E o pior do pior: pretenderam me obrigar a tomar posse em menos de três dias, em gabinete, como se a posse em sessão pública só os políticos do Tribunal tivessem direito.

 

Nunca aceitei autoritarismo; nunca.

 

E jamais aceitaria tomar posse escondido em gabinete.

 

Comigo, não.

 

 

Foi por isso que demorou mais de ano e meio para uma mera promoção ser realizada; porque o autoritarismo quer mandar. Porque o autoritarismo não entende que um Tribunal de Justiça não pode deliberar como se estivesse em uma assembleia política ou em uma reunião de condôminos, reitero. Não entende que há uma Constituição da República que deve ser observada. E não entende que o princípio da igualdade é o mais importante de todos, porque é o princípio que embasa todos os outros, princípio sem o qual os demais não existiriam. Não entende que, sem respeito aos princípios, o Direito não serve nem para discurso de formatura, se torna mera ilusão e conversa fiada e inútil de bacharel entediado ou coisa pior...

 

Os princípios não são meros enunciados; são conquistas éticas da civilização. Muitos morreram para que eles surgissem e fossem escritos na pedra. Mas não adianta escrever isso, se não se luta para a sua aplicação na vida concreta de todos nós.

 

Mas a Constituição da República vai voltar a ser respeitada no Rio Grande do Sul.

 

Eu garanto que vai.

 

A Constituição da República vai voltar a ser respeitada no Rio Grande do Sul, sim.

 

Porque o Tribunal de Justiça vai voltar a decidir com base na Lei; com base na Constituição da República.

 

Porque a postura autoritária do Tribunal de Justiça acaba hoje.

 

Este é o meu desafio.

 

É chegado o momento de encaminhar o discurso para o fim. E o fim será uma homenagem a todos que marcaram a minha vida de uma forma especial. Todos, não; alguns, pois é impossível citar todos.

 

Antes, no entanto, quero deixar claro o que penso a este Tribunal: ou mudamos as coisas, ou, mais cedo ou mais tarde, o povo na rua exigirá, como ocorreu à época da Revolução Francesa. O povo percorreu as ruas o ano passado, exigindo mudanças, mas os políticos do Planalto Central não entenderam. Talvez não só eles.

 

Pois bem.

 

Chego a este Tribunal de peito aberto, disposto ao diálogo e a percorrer novos caminhos, através do trabalho coletivo, para que o sistema de Justiça melhore. Sou apenas mais um, mas quero fazer a minha parte. Penso que as coisas podem cambiar, sim, até porque é mais do que urgente que cambiem. Mas de que forma mudar? Abrindo, todos nós, espaço para o diálogo desarmado, em que as ambições políticas de caráter pessoal fiquem em segundo plano; em último, de preferência; que façamos predominar a vontade de construirmos projetos coletivos de mudança. Para isso é necessário ouvirmos um ao outro, de verdade; ouvir, mais ainda, os magistrados de Primeiro Grau, pois são os que carregam o peso do piano nessa imensa orquestra só de pianos que é o volume de trabalho nas Comarcas do Interior e nas Varas da Capital. Há comarcas - e são muitas, infelizmente - em que é insustentável o volume de trabalho que recai no magistrado e nos servidores, nossos irmãos de caminhada na dura luta da Justiça. Temos que conversar, com urgência, sobre tudo isso. Fazer planos, buscar soluções. Se houver espaço de diálogo para isso, pretendo aqui permanecer durante seis ou sete anos. A todos os que acreditam nesse sonho de lutarmos por mudanças, fica a cuia de chimarrão estendida para que o diálogo comece; a charla principie. Caso contrário, se for para navegar sozinho no meu rio, como até hoje foi, boto no lombo a mala de garupa e o violão, monto no Tordilho Negro e vou tratar de outras coisas, pois a minha vida vai muito além do Direito. Em síntese, se é para não mudar nada e deixar que tudo fique como está, faço como o pipoqueiro: me bandeio para o outro lado da rua, balanço sem esperança a cabeça - que ainda não tiraram - e deixo de acreditar.

 

Talvez, no fundo, o meu nome, como o poeta, também seja tumulto, pois não vim ao mundo e a este Tribunal pra botar foto em parede, muito menos pra deixar, por omissão, que tudo continue como está. Na verdade, são três os caminhos que me servem e em qualquer deles vou andar: ou tudo muda - ou tudo muda; ou, então, me mudo - e, então, que tudo fique como está...

 

Quero terminar e não consigo: sempre me ocorre mais alguma coisa. E algo que me ocorre é que nunca entendi a crítica velada que existe na Magistratura a quem causa polêmicas. Quando não é velada, é dita assim:

 

- É, é um bom juiz; mas é polêmico.

 

Não entendo. Afinal, o polêmico é apenas o que pensa diferente da média; ou o que pensa igual a muitos, mas é um dos poucos que fala. Nesse confuso mundo em que vivemos, em que tanto se fala na necessidade de proteger as minorias, por que a minoria dos polêmicos é tão perseguida? Cito alguns polêmicos antes de mim e muito melhores do que eu: Márcio Puggina, Marquinho Scapini, Henrique Roenick, Ruy Gessinger, todos eles brilharam, todos eles grandes Magistrados, todos eles criticados como polêmicos, todos eles, por coincidência, promovidos por antiguidade ao Tribunal.

 

É impressionante, mas em pleno Século XXI, não percebem que essa é a natureza dos polêmicos e essa é a sua forma de contribuir para a Democracia: questionando, vendo a vida por outro ângulo - talvez não melhor, mas diferente e diverso. Aliás, pergunto: quem contribui mais para a Democracia e para o aprimoramento das instituições? Os que, via de regra, concordam com o Poder; ou os que o questionam, não importam os prejuízos que sofram?

 

Não quero cotas para polêmicos. Não quero multiplicação de números para polêmicos. Quero igualdade. Porque polêmico eu sou e polêmico eu vou continuar.

 

O Márcio Puggina foi o primeiro juiz a ingressar com um mandado de segurança para discutir a questão das promoções. O motivo dele era apenas este: saber qual a restrição quanto a ele. Não sabia, porque na época as decisões do Tribunal eram a portas fechadas. Na verdade, Puggina não estava interessado em buscar o merecimento, mas que as portas do Tribunal fossem abertas e que as decisões fossem públicas. E em grande parte pela luta dele, hoje as sessões de julgamento no Tribunal são públicas. Mas parece que todos esquecem que tudo começou com um mandado de segurança do Puggina, aparentemente para discutir "merecimento". Ele não buscava o "merecimento". Isso não importava.

 

O merecimento está dentro de nós; quem sabe o que tem dentro de si, não precisa de "merecimento" outorgado por ninguém - a questão é outra: existe uma Constituição da República a ser respeitada, e ela não foi.

 

Da minha parte, jamais ingressaria em Juízo para ser promovido por merecimento. Não me movo por vaidade. A Justiça tem coisas mais importantes a tratar do que vaidades de juiz. O que eu busco, o que eu quero, o que eu exijo, como juiz e cidadão, é que o direito previsto na Constituição da República, através do princípio da igualdade, seja respeitado; caso contrário, a Justiça deixa de existir; o Direito será apenas uma forma de exercício de poder para prejudicar uns e favorecer outros. Um mero discurso vazio - e isso não me serve.

 

Este discurso vai terminar com homenagens a quem muito merece. Tenho que abreviar, embora muito tivesse ainda a dizer: então, pergunto - qual é o meu recado gaúcho e gaudério a este Tribunal, antes das homenagens que logo farei? No estilo missioneiro da minha terra, a mesma terra da minha mãe e de meu pai, de onde vem a minha essência de ser humano, de forma franca, de peito aberto, falando na frente, alto e claro, afirmo, sem medo nem vacilação: os que se julgam donos do poder, agora e sempre, são iguais aos da época da Revolução Francesa; não aprenderam nada. Não entenderam ainda que acabou a distinção; acabaram os privilégios. Desde 1789, o verdugo é igual, em direitos e deveres, a quem pensa que ainda é rei. Saiu do poder, mas quer continuar mandando e desmandando. Não manda mais.

Não comigo neste Tribunal.

 

O recado foi curto; foi direto; mas ninguém pode dizer que fui rude; muito menos grosso. Porque falei forte, mas comecei com Sócrates; citei Hammurabi, o primeiro Magistrado da Humanidade e até declamei poesia de Don Pablo Neruda.

 

Fui duro. Mas não perdi a ternura...

 

A primeira homenagem é ao Mestre Sérgio Gischkow Pereira, um dos maiores Magistrados do Rio Grande. Se eu nunca tivesse sido aluno dele, talvez jamais teria pensado em ser juiz. O seu idealismo pela Magistratura influenciou decisivamente a minha vida. Muito obrigado, Mestre Gischkow.

 

A segunda homenagem é a todos os professores. Sem eles, nenhum de nós estaria aqui, neste Tribunal.

 

Quero representar essa homenagem em duas pessoas:

 

a) em Anelise Diehl Fabrício, minha mulher, com quem compartilho a minha alma e a minha vida. A homenagem é justa; ela dedicou a sua vida a ensinar a crianças carentes o mundo fantástico da abstração das equações e das figuras geométricas, mundo pleno de equilíbrio, forma diversa da igualdade. E, ao pensar no mundo fantástico da Matemática, onde brilha a minha mulher, percebi que o mundo abstrato da Matemática e da Geometria é muito diferente do mundo do Direito, o mundo dos homens, o mundo concreto em que a vida é tumulto, como disse Drummond. Porque no mundo da Matemática, os números merecem o mesmo respeito e consideração; não se multiplicam números em fórmulas injustas, pois é um mundo de equilíbrio e igualdade. O mundo dos homens é muito diverso - e perverso também; aqui se multiplicam números para uns, mas não para outros; talvez porque, no mundo real do Direito, não se busca o equilíbrio, nem a igualdade, mas o poder;

 

b) o segundo professor a quem homenageio, representando a todos, é, possivelmente, o intelectual mais culto que conheci. Um historiador brilhante, homenageado pela França, mas sem o devido reconhecimento na sua própria terra. Ao Mestre Voltaire Schilling, o meu respeito e a minha gratidão por tudo o que aprendi. Muito me honra a sua amizade, Mestre.

 

Presto, ainda, uma homenagem aos meus irmãos de toga, aos que, de alguma forma, ainda que breve, através de poucas palavras, ou de um pequeno gesto, demonstraram que eu não estava, durante a minha caminhada, só. Isso não significa que concordassem com tudo o que defendo; com todas as minhas convicções; com todas as minhas lutas. Claro que não; somos humanos; somos diversos; essa é a grandeza da vida, do Direito e da Democracia.

 

O que significa, enfim, é que, em algum momento da minha caminhada, pensamos igual em algum ponto. Isso me basta, porque não estava só.

 

Essa homenagem seria menor, incompleta - e até injusta - se eu não escolhesse um Magistrado para representar a todos. Escolho, então, o Magistrado Cairo Roberto Rodrigues Madruga, um gaúcho de Piratini, um dos juízes mais inteligentes que conheci e que me honra com a sua amizade. Mas, por favor, não culpem o Cairão: ele, às vezes, concorda comigo; outras, não. Como é próprio das grandes amizades.

 

Antes da última homenagem, deixo aqui o meu agradecimento pelas palavras do Magistrado Jayme Weingartner Neto, homem brilhante e extremamente generoso. A vida é realmente um círculo, como disse o poeta: no início da minha vida na Magistratura, quando Pretor, trabalhei com o seu pai; hoje chego ao Tribunal e sou saudado pelo filho. Um abraço ao pai; outro, ao filho.

 

Até aqui segurei as lágrimas; mas agora vai ser difícil, porque esta é não só a melhor parte do discurso, é a única que está bem escrita. A parte bem escrita não começa agora, mas logo adiante.

 

A maior homenagem é para o meu filho, Rafael Diehl Fabrício, um homem muito mais inteligente e muito melhor do que eu.

 

Para homenageá-lo, conto uma história, algo que aconteceu em 2011, quando viajamos à Inglaterra, para conhecer a Planície de Runnymede, um lugar solitário, tranquilo e sem movimento nenhum. Lá chegando, aproveitei o silêncio e a paz daquele lugar pra dar uma caminhada. Lá pelas tantas, sentei na grama, solito no más, olhando aquela baita planície vazia, mas ensolarada, com uma leve brisa balançando a copa das árvores, lá adiante, perto do rio. Pensei um pouco na vida. Refleti. Então, chamei o meu filho, à época com 13 anos, e contei a história daquele lugar, a planície onde João Sem Terra foi obrigado a assinar a Carta Magna.

 

Contei também a história de quem foi o tal de João Sem Terra, um pobre diabo que queria ser rei e de como ele morreu, coisa que aqui não dá pra contar.

 

E termino o causo dizendo o seguinte pro piá:

 

- Sócrates morreu em defesa de seus princípios; o Império Romano morreu por ter esquecido os princípios; a Revolução Francesa se fundou na defesa de 3 princípios; a Carta Magna consagrou a defesa dos princípios.

 

Ele me olhou, pensou um pouco e não disse nada. Fiquei com a impressão de que talvez ele ainda não tivesse idade para refletir a respeito de um fato histórico de tanta dimensão. Nada a estranhar. Afinal, tanta gente muito mais velha do que ele, até hoje não aprendeu nada, por que um guri de 13 anos teria que aprender de imediato?

O resto da história prefiro contá-la com as palavras dele, que a escreveu quando tinha 14 anos. Esta é a única parte bem escrita deste discurso:

 

"Certa vez, viajei com meus pais à Inglaterra. Lá, o meu pai me levou ao local onde a Carta Magna, símbolo de democracia, liberdade e justiça, foi assinada, e me contou tal história. Pela primeira vez, percebi que, se simples homens conseguem criar uma Constituição para melhorar a situação de sua nação, livrando-a da tirania e injustiça, como aconteceu quando os revoltosos obrigaram o Rei João a assinar a Carta Magna, por que eu não poderia mudar o mundo e me tornar, também, um grande homem? Naquele dia, adquiri um caráter sonhador, de vontade de lutar pela ética, pela igualdade, pela felicidade de todos."

 

Isso foi escrito em março de 2012, há quase dois anos.

 

Rafael, meu filho, meu único orgulho: enquanto houver um Fabrício caminhando pelo mundo, vai existir um homem lutando pelo que acredita; não fui eu que te ensinei; isso sempre esteve em ti; dentro de ti; é teu. Enquanto existirem homens, grandes homens iguais a ti, haverá esperança de um mundo mais ético, mais justo, mais feliz e mais igual.

 

A esperança não morre jamais; o sonho não morrerá jamais; a chama do ideal brilhará sempre; a luta continua.

 

Obrigado, Rafael Fabrício, meu filho.

 

Newton Fabrício.