Afif Jorge Simões Neto [Afif@tj.rs.gov.br]
NÃO PERCAM TEMPO COM AS TESES
Aviso de utilidade pública aos intelectuais urbanos e um
que outro rural: não percam seu inestimável tempo elaborando fulgurantes teses
acadêmicas acerca da deturpação dos usos e costumes envolvendo o Acampamento
Farroupilha em Porto Alegre. Aquela gente, que se esmera no adorno do lote, a
fim de utilizá-lo sem alívio por uma quinzena bem cheia, as pilchas que é um
brinco e sorridente de orelha a orelha, não está nem um pouco preocupada com o
que vocês acham ou deixam de achar sobre a forma como eles cultuam o 20 de
Setembro. Se é o carnaval escandaloso dos bacudos citadinos, se é a beberagem,
o anarquismo, a imbecilidade em seu estágio mais primitivo, se é um Woodstock
gaudério, pouca ou nenhuma importância se lhes dá.
Esse pessoal, que lá está aquartelado pelo gosto da
tradição, quer apenas matar um pouco da saudade das coisas do campo - a maioria
veio do interior, tangida pela falta de oportunidades. Já que o assoalho da
guaiaca não permite que tomem champanhe francês na Padre Chagas, sobra-lhes a
alternativa da cachaça de alambique, enquanto a gordura da costela de segunda
vai avivando o braseiro a cada pingo que se desgruda da carne.
São homens de aparente rudeza e encantadora simplicidade.
São mulheres que têm muito da têmpera de Ana Terra e de Bibiana Cambará na
faina bruta de cada dia nos mais variados empregos, várias delas faxinando
casas alheias em troca de um salário miserável. Trabalham de fio a pavio o ano
inteiro, mas reservam o setembro para lavar a alma no açude imaginário que
brota do asfalto. Ninguém pode ser mais feliz do que todos eles nesses dias da
noviça primavera. Amam o Estado acima do país, e sabem de cor e salteado o hino
rio-grandense, ao contrário do outro.
Pior do que ser ufanista é ignorar o chão onde nasceu.
Como alguém pode ser condenado por cultuar, ainda que de forma até equivocada,
o passado do tempo dos avós?
Professam os doutos das sábias sociedades que falta aos
“gauchinhos” o estofo cultural para entenderem a Efeméride de 35. Ora, se nem
eles chegaram à conclusão se Bento Gonçalves foi herói ou ladrão, ou se em
Porongos houve a tal traição de David Canabarro aos seus lanceiros negros,
querem exigir dos medianos o quê? Primeiro que se entendam, para depois ditarem
as cartilhas. Já vi até historiador topetudo tentar provar por A mais B que os
farrapos não perderam a guerra!
Falando por mim, mesmo morando em Santa Maria, sempre que
posso dou um pulo no Parque da Harmonia para apreciar o movimento e a trilha
sonora das gaitas e violões que ressoa dos piquetes ornamentados. Reencontro os
amigos que deixei na Capital e aproveito para renovar o meu alvará de amor ao
Rio Grande. Aliás, se quereis saber, prefiro mil vezes a prosa tosca e
enfumaçada ao redor de um fogo de chão ao refrigério dos gabinetes acarpetados.
Ainda mais se estiver ecoando pelos alto-falantes daquele abençoado malocão
sazonal o canto rústico do Mano Lima.