quinta-feira, 20 de junho de 2013

OPINIÃO DE UM ADOTADO II

Depois que publiquei o dramático relato de João Lemes, jornalista,  trago aqui outro testemunho  , igualmente emocionante:
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Opinião de um Adotado: 

 

Amigo Ruy, acessei a pouco através do seu blog, ao comovido relato do que descreve os traumas que ocorrem nos processos de adoção, em especial por alguém que abre as janelas da alma nos relatando seus mais íntimos sentimentos.

 

Quando minha esposa foi diagnosticada com um problema em seu aparelho reprodutor que impossibilitava a continuidade da gestação, começamos a pensar na alternativa da adoção, confesso que não é uma decisão muito fácil, deve ser muito ponderada, pois necessita muita renúncia pessoal.

 

Depois de muitas peregrinações, recebemos um telefonema da médica ginecologista, que tratava de minha esposa, que nos falou de uma menina adolescente de apenas quatorze anos que havia dado a luz a duas meninas, gêmeas univitelinas, e que estavam na situação de indigentes na maternidade do hospital, lembro-me que resolvemos ir até a instituição e eu particularmente sentia-me pré-conceituoso e meio resistente ao fato de serem duas e do sexo feminino, mas ao nos dirigirmos ao berçário, acompanhados da irmã Margarida, uma velha freira Franciscana responsável, que nos foi logo dizendo que não concordaria em separá-las, fato que não cogitávamos em momento algum, ao chegarmos no setor, a irmã nos conduziu até uma janela de vidros em que era possível ver aquelas pequenas criaturas raquíticas deitadas justapostas num berço dormindo, foi neste instante em que uma delas, mesmo dormindo moveu-se e expressou um largo sorriso que naquele instante nos comoveu, foi como me dissessem vieram nos buscar(?), despertou-me um sentimento difícil de traduzir, foi uma sensação indescritível, passava-se naquele minúsculo instante, inúmeros pensamentos que se misturavam desde a sensibilidade que aquela cena proporcionava até o senso de responsabilidade que haveria de assumir em encaminhar aquelas vidas para o mundo.

 

Voltamos para casa, pensamos muito, e resolvemos voltar no dia seguinte para sacramentar a decisão, chegamos ao hospital comunicamos a irmã Margarida, que nos instruiu a buscar autorização judicial como o termo de responsabilidade e guarda, que tornou-se uma maratona que mereceria outro dia para relatar seus gargalos de burocracia, descaso, falta de preparo e estrutura por parte do estado.

 

De posse da documentação que nos autorizava levá-las para casa, com ajuda de muitos amigos e familiares, cada qual estendendo a mão, seja doando roupinhas, cama, mamadeiras, e tudo mais que se necessita de forma emergencial, e assim passamos as primeiras noites dos primeiros meses nos revezando no cuidado daquelas desnutridas criaturas que pesavam em torno de 1,5 kg. um mês após o nascimento.

 

Os dias foram passando, e na mais tenra infância, começamos a contar através de historinhas toda verdade sobre suas origens e condições de adotadas, apesar de tê-las assumido recém nascidas e legalmente registradas como filhas legítimas, contudo foram muitos os momentos em que coleguinhas de colégio as agrediam com palavras, com comentários de todo tipo, e não raras vezes entravam em casa chorando sem nos relatar detalhes dos sentimentos que as invadiam, mas não restringia-se somente a crianças, existiam adultos insensíveis que muito contribuíram negativamente para com os sentimentos traumáticos, buscamos por aconselhamento ajuda dos profissionais da psicologia, com objetivo de quem sabe amenizar um pouco os impactos, mas ainda bem que chegamos a conclusão a tempo muito rápido que este caminho nem sempre é o mais recomendado, que ninguém substitui os pais, nós éramos os esteios, nós éramos o porto seguro, para trabalhar estas questões de ordem pessoal, lembro-me de uma passagem que nunca esqueci, em que eu estava caminhando com elas, pela calçada, uma em cada braço, um senhor, vizinho próximo me disse: “hoje, vocês representam a segurança delas, amanhã quem sabe, elas não possam ser a segurança de vocês”.

 

A maioria dos casos que conheço sobre o processo de adoção, raros são os que não convivem com problemas traumáticos complexos que originam-se na fase de gestação e se estendem-se por toda a vida, uns com maior gravidade, outros não, mas a grande maioria sofre questões psicológicas em revelando ou não a condição. Tem um conhecido que quase enlouqueceu, adotaram três crianças, uma não queria estudar, revoltada, aderiu as drogas, a prostituição e abandonou o lar; outro ele descobriu que era homossexual, o menor só aprontava por onde passava e para completar uma empregada doméstica que servia a casa engravidou e deixou uma recém nascida para eles criarem (a quarta). Outros dois casos que conheço, descobriram mais tarde que a crianças eram deficientes, ou seja, para aqueles que imaginam uma opção fácil, não é não, há necessidade, como disse de grande desprendimento, aceitá-los como eles são e não como nós imaginemos ou desejaríamos que fossem, afinal alguém tem que disponibilizar-se a cumprir com a missão.

 

Hoje, passados 29 anos, relembrando tudo que passamos, entre acertos e erros, não temos absolutamente nenhum arrependimento, ao contrário sinto-me agradecido a Deus, pelo privilégio de ter nos confiado encaminhá-las na vida e ainda poder protegê-las, peço que me de forças, ânimo para fazer ainda mais, as amamos muito além do entendimento comum, mais do que se filhos legítimos fossem, são criaturas dóceis, sem maldade, alma pura, conseguimos dar-lhes uma boa formação superior, mas existem alguns traumas enraizados no núcleo da alma que não conseguimos desassociar.

 

Um dia quase por acaso, através de um jornal local, havia um edital de casamentos publicados pelo cartório, deparei-me com o sobrenome e fui atrás, solicitei certidões, locais de nascimento, dirigi-me aos cartórios de outras cidades, e pude rastrear o endereço da família muito pobre, a mãe das minhas filhas, sem contudo aproximar-me por temer reações cujas conseqüências não posso prever, contudo conversei abertamente com elas sobre o assunto, disse-lhes que seria possível, caso desejassem, conhecer a mãe biológica, mas a reação foi inversa ao esperado, pelo menos por enquanto, disseram-nos que não gostariam de rever o passado, e que para elas os pais eram nós, e que a mãe era minha esposa, quem as havia criado, embora saibamos que existe uma espécie de bloqueio psíquico em relação ao caso, pois o modelo normal é a constituição de uma família com pais e irmãos convivendo sobre o mesmo teto, não há recursos que substituam estes valores, mesmo com todo carinho, sempre existirá a falta deste convívio, as crianças sentem-se “intimamente estranhas” no seio daquilo que não substitui a família biológica.

 

Élvio Loureiro.