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Opinião de um Adotado:
Amigo Ruy, acessei a pouco através do seu blog,
ao comovido relato do que descreve os traumas que ocorrem nos processos de
adoção, em especial por alguém que abre as janelas da alma nos relatando seus
mais íntimos sentimentos.
Quando minha esposa foi diagnosticada com um
problema em seu aparelho reprodutor que impossibilitava a continuidade da
gestação, começamos a pensar na alternativa da adoção, confesso que não é uma
decisão muito fácil, deve ser muito ponderada, pois necessita muita renúncia
pessoal.
Depois de muitas peregrinações, recebemos um
telefonema da médica ginecologista, que tratava de minha esposa, que nos falou
de uma menina adolescente de apenas quatorze anos que havia dado a luz a duas
meninas, gêmeas univitelinas, e que estavam na situação de indigentes na
maternidade do hospital, lembro-me que resolvemos ir até a instituição e eu
particularmente sentia-me pré-conceituoso e meio resistente ao fato de serem
duas e do sexo feminino, mas ao nos dirigirmos ao berçário, acompanhados da
irmã Margarida, uma velha freira Franciscana responsável, que nos foi logo
dizendo que não concordaria em separá-las, fato que não cogitávamos em momento
algum, ao chegarmos no setor, a irmã nos conduziu até uma janela de vidros em
que era possível ver aquelas pequenas criaturas raquíticas deitadas justapostas
num berço dormindo, foi neste instante em que uma delas, mesmo dormindo
moveu-se e expressou um largo sorriso que naquele instante nos comoveu, foi
como me dissessem vieram nos buscar(?), despertou-me um sentimento difícil de
traduzir, foi uma sensação indescritível, passava-se naquele minúsculo
instante, inúmeros pensamentos que se misturavam desde a sensibilidade que
aquela cena proporcionava até o senso de responsabilidade que haveria de
assumir em encaminhar aquelas vidas para o mundo.
Voltamos para casa, pensamos muito, e resolvemos
voltar no dia seguinte para sacramentar a decisão, chegamos ao hospital
comunicamos a irmã Margarida, que nos instruiu a buscar autorização judicial
como o termo de responsabilidade e guarda, que tornou-se uma maratona que
mereceria outro dia para relatar seus gargalos de burocracia, descaso, falta de
preparo e estrutura por parte do estado.
De posse da documentação que nos autorizava levá-las
para casa, com ajuda de muitos amigos e familiares, cada qual estendendo a mão,
seja doando roupinhas, cama, mamadeiras, e tudo mais que se necessita de forma
emergencial, e assim passamos as primeiras noites dos primeiros meses nos
revezando no cuidado daquelas desnutridas criaturas que pesavam em torno de 1,5
kg. um mês após o nascimento.
Os dias foram passando, e na mais tenra
infância, começamos a contar através de historinhas toda verdade sobre suas
origens e condições de adotadas, apesar de tê-las assumido recém nascidas e
legalmente registradas como filhas legítimas, contudo foram muitos os momentos
em que coleguinhas de colégio as agrediam com palavras, com comentários de todo
tipo, e não raras vezes entravam em casa chorando sem nos relatar detalhes dos
sentimentos que as invadiam, mas não restringia-se somente a crianças, existiam
adultos insensíveis que muito contribuíram negativamente para com os
sentimentos traumáticos, buscamos por aconselhamento ajuda dos profissionais da
psicologia, com objetivo de quem sabe amenizar um pouco os impactos, mas ainda
bem que chegamos a conclusão a tempo muito rápido que este caminho nem sempre é
o mais recomendado, que ninguém substitui os pais, nós éramos os esteios, nós
éramos o porto seguro, para trabalhar estas questões de ordem pessoal,
lembro-me de uma passagem que nunca esqueci, em que eu estava caminhando com
elas, pela calçada, uma em cada braço, um senhor, vizinho próximo me disse:
“hoje, vocês representam a segurança delas, amanhã quem sabe, elas não possam
ser a segurança de vocês”.
A maioria dos casos que conheço sobre o processo
de adoção, raros são os que não convivem com problemas traumáticos complexos
que originam-se na fase de gestação e se estendem-se por toda a vida, uns com
maior gravidade, outros não, mas a grande maioria sofre questões psicológicas
em revelando ou não a condição. Tem um conhecido que quase enlouqueceu,
adotaram três crianças, uma não queria estudar, revoltada, aderiu as drogas, a
prostituição e abandonou o lar; outro ele descobriu que era homossexual, o
menor só aprontava por onde passava e para completar uma empregada doméstica
que servia a casa engravidou e deixou uma recém nascida para eles criarem (a
quarta). Outros dois casos que conheço, descobriram mais tarde que a crianças
eram deficientes, ou seja, para aqueles que imaginam uma opção fácil, não é
não, há necessidade, como disse de grande desprendimento, aceitá-los como eles
são e não como nós imaginemos ou desejaríamos que fossem, afinal alguém tem que
disponibilizar-se a cumprir com a missão.
Hoje, passados 29 anos, relembrando tudo que
passamos, entre acertos e erros, não temos absolutamente nenhum arrependimento,
ao contrário sinto-me agradecido a Deus, pelo privilégio de ter nos confiado
encaminhá-las na vida e ainda poder protegê-las, peço que me de forças, ânimo
para fazer ainda mais, as amamos muito além do entendimento comum, mais do que
se filhos legítimos fossem, são criaturas dóceis, sem maldade, alma pura,
conseguimos dar-lhes uma boa formação superior, mas existem alguns traumas
enraizados no núcleo da alma que não conseguimos desassociar.
Um dia quase por acaso, através de um jornal
local, havia um edital de casamentos publicados pelo cartório, deparei-me com o
sobrenome e fui atrás, solicitei certidões, locais de nascimento, dirigi-me aos
cartórios de outras cidades, e pude rastrear o endereço da família muito pobre,
a mãe das minhas filhas, sem contudo aproximar-me por temer reações cujas
conseqüências não posso prever, contudo conversei abertamente com elas sobre o
assunto, disse-lhes que seria possível, caso desejassem, conhecer a mãe
biológica, mas a reação foi inversa ao esperado, pelo menos por enquanto,
disseram-nos que não gostariam de rever o passado, e que para elas os pais eram
nós, e que a mãe era minha esposa, quem as havia criado, embora saibamos que
existe uma espécie de bloqueio psíquico em relação ao caso, pois o modelo
normal é a constituição de uma família com pais e irmãos convivendo sobre o
mesmo teto, não há recursos que substituam estes valores, mesmo com todo
carinho, sempre existirá a falta deste convívio, as crianças sentem-se
“intimamente estranhas” no seio daquilo que não substitui a família biológica.
Élvio Loureiro.